Delicadezas da Caatinga
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 07 de Junho de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O bioma caatinga e seus admiradores ganharam um presente muito especial nesta Semana do Meio Ambiente. Em angulações que apontam especialmente para a beleza e para a riqueza de um lugar historicamente marcado pelos estereótipos da estiagem, o “Guia de plantas visitadas por abelhas na caatinga” (Fundação Brasil Cidadão, 2012), editado com apoio da Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa), da Universidade de São Paulo (USP) e Petrobrás, reúne em suas páginas um importante conteúdo visual e científico.
A graciosidade das plantas, flores e abelhas, capturadas em fotografias e estudos de coevolução, desabrocha em espetaculares encantos que sacralizam a vida e enchem os olhos de quem ama a natureza. Muitas dessas preciosidades brilham no anonimato da mata branca porque, como elementos da biodiversidade de uma região histórica e politicamente atrelada ao subdesenvolvimento, nunca estão nas prioridades de catalogação, de referência estética e de aproveitamento dos seus princípios ativos.
Felizmente isso está mudando, lentamente e a duras penas, mas está mudando. Este guia, com seus textos e fotos sobre árvores, arbustos, subarbustos, trepadeiras e herbáceas, realçados em formas, tamanhos, cores e época de florescimento das flores observadas, é uma prova da existência de novos olhares valorizando a caatinga. As biólogas Camila Maia-Silva, Cláudia Inês da Silva, Vera Lúcia Imperatriz-Fonseca e os biólogos Michael Hrncir e Rubens Teixeira de Queiroz, autores do livro, colheram toda essa maravilha em trabalhos de campo realizados no Ceará e no Rio Grande do Norte, com financiamento da Capes e do CNPq.
Em atraente projeto gráfico de Mauri de Sousa, o livro mostra o galanteio das flores e dos insetos que as polinizam, em consagração à luz e à delicadeza da força botânica no fantástico campo vital do planeta. Mas a jandaíra, a jati, a irapuã e as abelhas que forçaram um processo de mestiçagem como a italiana e a africana, não estão ali somente para cumprir essa tarefa e fazer o mel (fonte de geração de renda de muitas famílias), elas fazem parte da paz silenciosa dos prazeres universais. E as flores não se embelezam apenas para tornar a natureza mais bonita, mas para serem amadas pelas abelhas, loucas pelo néctar açucarado do qual se alimentam.
As flores são os aparelhos reprodutores das plantas (angiospermas) e se exibem nas mais variadas cores e formas: são triangulares, na carnaubeira; vulvárias, no pau d’árco, jucazeiro, jequitirana, catingueira e palma-do-campo; agarradinhas, na umburana, no juazeiro e no pega-pinto; clitórides, no faveleiro, matapasto, jurubeba, na melosa e no fedegoso; cone-vaginais, na sete-patacas, salsa e jetirana; pubianas, no pacoté (algodão brabo) e na vassourinha-de-botão; pirotécnicas, no feijão-brabo, na malícia e no angico; estrelinhas, no umbuzeiro, e evolução estelar, no marmeleiro; só para citar algumas.
À medida que nos damos a oportunidade de apreciar e de sentir a grandeza de vidas assim, tão livres e integrais, tão belas e produtivas, bem que poderíamos reduzir as ambições que nos levam a desprezar a natureza e para as quais muitas vezes empenhamos os melhores momentos de nosso ciclo de existência. Publicações como o “Guia de plantas visitadas por abelhas na caatinga” podem funcionar como espelhos purificadores do nosso olhar e como fontes de negação da opacidade que impede o desenvolvimento da necessária e urgente formação da nossa ecoconsciência planetária.
A apreciação desse guia foi para mim para mim uma experiência gratificante. Ele fala especificamente do mundo onde eu nasci. Observei cada árvore, cada flor e cada abelha com o respeito e a reverência de quem folheia detalhadamente álbuns de amigos de infância. Os botões florais da meninice, as influorescências das brincadeiras e as pétalas vivas e variadas que nos aproximam, surgiram página a página, enquanto eu ia dando sons às fotos e sentindo cores, cheiros e sabores de tudo isso que, incrivelmente, permanece tão forte em mim.
Meses atrás tive sensação semelhante ao ler o livro “Flores da Caatinga” (Instituto Nacional do Semiárido, Campina Grande, 2010), dos botânicos Antônio Sérgio Castro e Arnóbio Cavalcante, editado com o apoio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Entre fotos e textos ricos da flora regional, esse livro oferece uma imensa expressão de delicadeza das flores em plena rudeza da caatinga. Impossível passar indiferente diante de tamanha lembrança da experiência de sentir-me presente naquele cenário.
Trabalhos de grande relevância como o “Guia de plantas visitadas por abelhas” e o “Flores da Caatinga”, não servem somente para quem tem valor afetivo por essas plantas e suas flores. A natureza está dentro até mesmo do mais citadino dos seres, mesmo aquelas pessoas que, quando diante de flores naturais, dizem que são tão perfeitas que parecem de plástico. Querendo ou não, o indivíduo urbano está nas árvores das ruas, das praças e dos jardins. O fato de, na cidade, o mundo botânico estar dividido e repartido por construções de concreto presas em cintas de asfalto, pode até nos embrutecer, mas não há como tirar totalmente de nós o vínculo original com a natureza.
Imagens como as das abelhas nas flores podem polinizar esse entendimento na mais urbanizada das pessoas, mesmo que seja apenas pela boniteza, pelo exótico, pela memória ancestral. A fotografia não é a natureza, mas pode sugerir a vastidão do que não é percebido no desencontro da cultura com o meio ambiente. As imagens de livros como esses servem para nos tirar da passividade, da inércia, chamando a atenção à pobreza do nosso modelo de vida contemporâneo, que precisa ser redirecionado, inclinando-se preferencialmente a um estado de maior inteireza e de um sentir continuado.
As fotos de flores são diferentes dos buquês. Os buquês antecipam o tempo de vida das flores, matando-as antes do tempo. As fotos eternizam sem antecipar ciclos. Não gosto de dar flores de presente; parece-me uma demonstração de fraqueza da relação. O maior presente que se pode dar com flores é levar a pessoa querida ao jardim, ao lugar onde as flores estão vivas, onde os insetos fazem a brincadeira do gozo da polinização. Nessas circunstâncias, tirar uma flor espontaneamente, quer pelo cheiro, quer pela beleza, para dar à pessoa amada, faz parte da função da flor e do amor. É diferente.
Tenho pena também dos bonsais. Em nome do charme decorativo, essas plantinhas são privadas da liberdade de viver na natureza para sobreviverem inanidas por torturas, que vão desde a poda de raízes até a sede controlada, passando por apertados vasos que impedem que cresçam. São fáceis de cuidar, sujam pouco, eu sei, mas não é bom para abelhas, borboletas e beija-flores. É diferente da poda feita com respeito ao espreguiçar dos galhos. Acho horríveis também aqueles jardins geométricos, que tiram a liberdade dos galhos, das folhas e das flores vadiarem.
Um livro de fotos ou um livro de pinturas e de textos sobre flores é para mim mais bem-vindo do que buquês ou bonsais. Uma boa foto de natureza não deixa o leitor somente no livro; ele passa a ter vontade de ver de perto o original, saindo consequentemente do plano mental para os planos vital e espiritual. E quando fazemos isso é porque nos identificarmos com o voo das abelhas, com a firmeza das árvores, a flexibilidade dos arbustos, a trama das trepadeiras e com a atração das flores.