Socioeconomia criativa
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 14 de março de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O que se convencionou chamar de “economia criativa” tem duas vertentes que merecem ser observadas com muita atenção, a fim de que possamos tirar o máximo de benefícios das oportunidades que estão postas pela nova economia mundializada. Uma delas está associada às novas configurações de negócios, possibilitadas pelas tecnologias digitais e da comunicação em rede; a outra diz respeito à dinamização e exploração do potencial da matéria-prima dos saberes, do conhecimento e da criatividade.
Ambas deságuam, contudo, na conveniência de cada sociedade, com relação ao que quer para si, diante das ofertas da nova economia: ter fortalecido ou expropriado o seu patrimônio imaterial. Essa implicação de cunho comportamental foi colocada por mim no debate sobre “economia criativa”, promovido no dia cinco deste mês, pelo programa Agenda Nordeste, da TVC, comandado por Moacir Maia, com produção de Tarcísio Matos e participação da assistente social Silma Magalhães, coordenadora do projeto Arte e Cultura na Reforma Agrária, do INCRA.
Procurei introduzir esse dilema no debate por entender que no Nordeste temos uma parte abundante desses recursos, manifestada, de um lado, na expressão da sua arte e nas soluções criativas para o viver, e, de outro lado, na escassez de proatividade, resultante da incompreensão quase generalizada de que tudo isso é de grande importância comercial no mercado global de conteúdos, o que deixa a região muito vulnerável diante do avanço das corporações transnacionais que estão se apropriando desses insumos intangíveis, dentro do velho modelo concentrador de riqueza.
O conceito de “economia criativa” traduz uma maneira nova de exploração racional do valor econômico de algo muito antigo. Viver de serviços e produtos criativos é uma prática evidenciada ao longo da história da humanidade. Sem contar que há pouco mais de uma década chamava-se isso de “economia da cultura”. A nova formulação tem o caráter do marketing do “seminovo”, utilizado pelas revendas de automóveis, como ferramenta criativa e legítima de sedução dos seus consumidores. Com essa analogia livre, quero dizer que o mercado criou a expressão “economia criativa” para faturar em cima de “seminovos” culturais.
A priori, temos muito que comemorar com a perspectiva de inclinação da economia internacional para o mercado de serviços e produtos renováveis. Afinal, as atividades das mídias, do urbanismo, design, artes e literatura, moda, comércio vintage, jogos eletrônicos, serviços de lazer e entretenimento, tudo é economia criativa. Com o passar do tempo, vai-se vendo que no oculto do aparente o que parece ambientalmente limpo tem lá seus poluentes simbólicos e seus riscos de comprometimento da criatividade também pelas tentativas conscientes e inconscientes de enquadramento econômico de artistas e criadores em geral.
As circunstâncias geradoras do que tenho chamado de reflorestamento cultural são favoráveis, haja vista as movimentações impulsionadas por programas do Ministério da Cultura (MinC) que, nos últimos dez anos, fizeram o reconhecimento de atividades culturais tradicionalmente marginalizadas, promoveram compartilhamento de fruição estética alternativa e ampliaram as condições de produção e circulação do que antes não se enxergava por conta de algumas molduras severas, definidoras do que vale e do que não vale a pena ser visto.
Nas esferas da sociedade civil, da iniciativa privada e dos governos, muitas são as experiências que podem ser tomadas como exemplo de plataformas do que seria, não necessariamente uma “economia criativa”, mas do que prefiro pensar como uma “socioeconomia criativa”, algo que signifique resultados na felicidade das pessoas, com efeitos econômicos. O trabalho coordenado pela Silma Magalhães, que esteve no debate comigo, é um dos exemplos de ação de órgão público que, mesmo tendo como finalidade a democratização do acesso e do direito à terra, trata o vigor cultural como elemento do sistema produtivo.
O principal modelo de “socioeconomia criativa”, articulada com preponderância por força da sociedade civil organizada no Ceará, é a Fundação Casa Grande, em Nova Olinda. Ali, impulsionado pela produção do debate e do fazer artístico, na conversa de linguagens tradicionais e digitais, o que inicialmente seria apenas um projeto cultural transformou-se em um empreendimento coletivo, que evoluiu para o desenvolvimento de sistemas econômicos comunitários, como o agrupamento de pousadas residenciais e o transporte turístico cooperativado, partilhado por famílias das crianças e adolescentes que participam dos projetos da fundação.
A cooperativa Pirambu Digital também é um caso de êxito do impulso dado por uma escola pública federal a jovens de um bairro de Fortaleza, para o empreendimento criativo voltado ao desenvolvimento de softwares, suporte técnico a redes de comunicação, cursos e serviços de manutenção de máquinas e equipamentos. Nessa linha do uso das novas tecnologias, vale destacar ainda em Fortaleza a Art & Cia, um condomínio de criação artística, produção digital e realização de cursos de animação 3D, pinturas digitais, desenvolvimento de games e arte de modelar para cinema, montado por iniciativa de artistas e produtores independentes.
A atitude de artistas que resolveram montar com sucesso o próprio centro de propulsão cultural, do interior para o mundo, pode ser exemplificada pela Casa de Teatro Dona Zefinha, em Itapipoca, que realiza ações formativas, espetáculos e compartilhamento de ideias a respeito da música e das artes cênicas para adultos e crianças; e pelo Museu Brinquedim, em Pindoretama, onde o pintor, escultor mestre em engenharia de brinquedos populares e brincante DIM, combina arte com brincadeira para interação, estudos e visitação pública.
Realço essas experiências replicáveis de “socioeconomia criativa”, vivenciadas no Ceará, com a intenção de sinalizar o quanto o nosso terreno da cultura é variado e fértil, e o que não falta é talento para ser potencializado. Para seguir em frente, precisamos entrelaçar os elos dessa cadeia, a partir de políticas raciocinadas, não pelo lado da carência, mas da potência. Há ainda muita precariedade quanto ao que isso significa para a nossa vida social e econômica e essa limitação resulta em projetos oficiais que, ao invés de construir autonomia, constroem dependências.
Um caminho a ser percorrido é o de buscar referências em lugares, como os países escandinavos que: a) conseguiram avançar social e economicamente sem descolar suas raízes do que passariam a ser a qualquer tempo e circunstâncias; b) apostaram no respeito à alma inventiva dos seus fabuladores; e c) estabeleceram padrões de equilíbrio na retribuição aos esforços produtivos, evoluindo para um sistema de salários no qual a diferença entre o mais baixo e o mais alto é de no máximo quatro vezes.
Passados os tempos de influência da revolução industrial e com o advento da revolução digital e virtual, capitais como Estocolmo, Oslo e Copenhagen pulsam cultural e economicamente em plataformas de design, turismo, serviços e novas tecnologias digitais e de comunicações. Isso só foi possível, digo sem medo de errar, porque ali a inovação começou na cultura. É por terem vivas as matrizes dos seus conteúdos que podem se reinventar e viver em um mundo estável.
É possível chegar lá, mas antes temos que resolver o passivo da falta de entendimento de quem somos e do que queremos. Enquanto isso, podemos evitar o uso da fantasia da “economia criativa” no que ela traz de velha noção de progresso, modelo concentrador e mais-valia disfarçada, e passar a fortalecer o sentido de “socioeconomia criativa”, fugindo da sina de meros fornecedores de cultura “in natura” e de trabalho braçal para as novas transnacionais do mercado de conteúdos, para aproveitarmos as oportunidades que estão postas e nos desenvolvermos de fato.