Padre Cícero e o papa Francisco
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2

Quinta-feira, 28 de março de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Contradições de mito à parte, pode-se dizer que as voltas que o mundo dá colocaram em linha, mais de um século depois, aspectos da ação pastoral do padre Cícero com os princípios do novo papa Francisco: uma igreja voltada aos pobres e ao respeito à natureza, com prevalência da humildade do sacerdote e não das distinções medievais da estética e da hierarquia eclesiástica.

Pela inspiração em São Francisco de Assis, logo na escolha do nome, penso que não será surpresa se o Sumo Pontífice lançar uma nova encíclica do tipo “Amar a Deus e à Sua Criação”. Seja como for, no momento em que o mundo dito rico entra em rota de empobrecimento, os recursos naturais não renováveis passam por situação de colapso e o catolicismo tem perdas vertiginosas de fiéis, o óbvio é que a tendência natural de um papa jesuíta e sul-americano seja investir na reaproximação com o povo.

A possibilidade de o papa Francisco lançar mão de uma figura aglutinadora de multidões como o padre Cícero me veio à mente após a leitura da matéria “Juazeiro comemora 169 anos de aniversário de Padre Cícero”, da repórter Elisângela Santos (Diário do Nordeste, Caderno Regional, 24/03/2013). Nela, o escritor Geraldo Barbosa sinaliza para a propensão do Papa de abrir as portas para o reconhecimento e valorização do padre Cícero, e a pesquisadora Anette Dumoulin reforça essa hipótese por ver na opção do líder religioso brasileiro pela causa dos pobres um ponto de sensibilização do papa Francisco.

Embora tenha tido a sua vivência pastoral sistematicamente combatida por parte do alto clero local e por cardeais do Vaticano, reza a lenda que o padre Cícero tinha a expectativa de que um dia a própria Igreja Católica se interessaria por reabilitá-lo. Pode ter chegado a hora. O resgate do insurgente santo nordestino pelo que ele revela de contemporâneo na sua teologia popular é tentador. Afinal, uma figura que, depois de 79 anos de falecimento, segue durante todo o ano de todos os anos atraindo milhares e milhares de pessoas, dos mais diferentes lugares do mundo, na cidade que fundou, não é uma referência espiritual desprezível.

A priori, numa avaliação feita a partir da importância alcançada pela imagem do padre Cícero, como personalidade síntese de um contexto histórico-cultural, no que ele antropologicamente abrange de aspectos religiosos, econômicos e políticos, essa reabilitação canônica hoje seria pouco interessante. O padre Cícero ficou maior do que a sua face religiosa elevada ao plano do sagrado pelas massas, mesmo contra as ordens do Vaticano. Ele é um místico da cultura do povo e o povo tem várias religiões. Pelo viés da cultura, o santo de Juazeiro é uma figura do ecumenismo. Para ele, as pessoas, ricas ou pobres, que tivessem fé em Deus e que gostassem de trabalhar estavam nas suas bênçãos.

Não fosse o desejo e a obstinação do próprio Cícero contra a rejeição que sofreu ao seu trabalho pastoral pela Igreja a que tanto prezou, eu diria que esse assunto não mereceria sequer entrar em pauta. Mas o padre Cícero morreu expressando essa vontade e parece que os juazeirenses sonham em satisfazer o seu desejo, até como forma de agradecimento pelo que ele fez para tornar Juazeiro e o Cariri um vórtice socioeconômico nordestino. Os romeiros, como um todo, talvez não tenham, nem precisem ter esse mesmo sentimento. Para eles, o “Padim Ciço” é santo e pronto. E isso é uma questão essencialmente cultural e não apenas religiosa.

O padre Cícero, com ou sem o aval da Igreja, é o mais importante santo popular brasileiro, e a sua Juazeiro, palco de tantos acontecimentos vigorosos, um efusivo santuário, curiosamente movido pela devoção a um santo não-canonizado. Neste aspecto, o que precisa ser ponderado no que diz respeito à sua virtual reabilitação é o que ela poderá trazer de negativo com um suposto afastamento daqueles devotos praticantes de outras religiões, e o que agregará de positivo com a reabertura de polêmicas, tais como a do milagre da hóstia que sangrou na boca da beata Maria de Araújo.

As peregrinações de hoje não têm mais ligação direta com o fenômeno da hóstia da beata, mas com o poder do mito do padre Cícero e de suas lendas. Ele é um personagem épico, que a seu modo deu prosperidade a um lugar desacreditado, pela valorização da potência dos desvalidos. Quando o recém ordenado padre Cícero assumiu o posto de capelão do povoado de Juazeiro, aquele lugar era visto como infértil produtivamente e habitado por toda sorte de incapazes. Oito décadas depois da morte do seu fundador, a Juazeiro do Padre Cícero é a maior e mais importante cidade do interior do Ceará, a única no Estado com rotas regulares de aviação comercial.

Isso foi possível porque o padre Cícero deixou uma memória dinâmica, inquieta, capaz de seguir transformando pelo exercício do contraditório. Contam que o principal ponto que sustentou a rixa do prelado católico com Cícero foi a sua resistência em ser um sacerdote dentro dos padrões tradicionais de distanciamento do clero, enquanto o povo queria que os outros padres fossem tão próximos quanto ele. O tempo passou e a Igreja em crise parece se dar a chance de rever sua relação com as pessoas mais simples. No pronunciamento que o papa Francisco fez para a imprensa no dia 16 deste mês, é possível notar alguns pontos em comum com a teologia empírica do padre Cícero:

a) Ao justificar a escolha do nome Francisco, como uma inspiração em São Francisco de Assis, o novo pontífice afirma publicamente o seu desejo de liderar uma Igreja Católica “pobre e para os pobres”.

b) Ao pagar pessoalmente a conta do hotel onde ficou hospedado antes de ser escolhido para ser o novo Papa e ao recusar as vestes suntuosas, a limusine oficial e a residir no Palácio Apostólico, Francisco sinaliza que é contra a ostentação e a favor da simplicidade.

c) Ao pedir licença aos agnósticos e aos seguidores de outras religiões para abençoá-los, por considerar a todos como filhos de Deus, o papa Francisco demonstra que está aberto ao diálogo para além das fronteiras do catolicismo.

Assim como foi o padre Cícero, o papa Francisco é um sacerdote de prática terrena voltada às pessoas mais humildes. E, guardadas as devidas proporções e contextos, observando bem, há também certos paralelos entre São Francisco e o padre Cícero:

a) O padre Cícero era filho de um comerciante não tão rico quanto o pai de São Francisco, mas certamente ambos herdaram da atividade dos pais a habilidade do relacionamento do balcão, onde ouvir e considerar o outro é fundamental.

b) Os dois viveram os horrores da guerra. São Francisco, em combates civis de classes dominantes (1202) e o padre Cícero na resistência às forças militares orientadas para destruir a experiência de Juazeiro (1914).

c) São Francisco ficou conhecido como defensor da natureza e o padre Cícero como um pregador do equilíbrio da relação do homem da caatinga com o meio ambiente.

Claro que há muitas diferenças entre eles. Tanto que a fraternidade de São Francisco foi autorizada pelo Santo Ofício e, para fazer valer a sua irmandade, o padre Cícero teve que apelar para a política, como recurso institucional de articulações e realizações. As feridas que apareceram no corpo de São Francisco foram aceitas pela Igreja eurocêntrica como associadas às chagas da crucificação de Jesus, fenômeno que levou à canonização do santo de Assis. Mas a crença do padre Cícero de que o sangue saído da boca da beata na hora da comunhão era sinal do Corpo de Cristo sangrando foi motivo de seu expurgo oficial.

O que mais me impressiona no padre Cícero é o vigor cultural que ele simboliza. É provável que os seguidores do papa Francisco, inclusive os seus colegas Jesuítas, que sempre ensinaram, tenham muito o que aprender com ele. E em 2014, o calendário ciceropolitano reserva duas datas redondas para pôr esse fervoroso debate em dia: em 24 de março, teremos os 170 anos de seu nascimento e, em 20 de julho, os 80 anos da sua morte.