Os bichos do Ecad
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 16 de maio de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Por esses dias o mundo dos direitos e dos negócios da música entrou mais uma vez em polvorosa, com a proximidade do prazo (29/05/2013) de pagamento da multa de cerca de R$ 38 milhões, aplicada pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) ao Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), por formação de cartel e, diante dessa prerrogativa, fixação de valores abusivos na cobrança de Direitos Autorais.
O Ecad se defende, alegando que o Cade está fazendo o jogo das corporações de tevê a cabo, que não querem pagar pelas músicas que veiculam. Anagrama à parte, o fato é que o assunto entrou na pauta da guerra de monopólios. De um lado, a televisão por assinatura que, em 2012, faturou R$ 16,9 bilhões, e do outro, o Ecad, que no mesmo período arrecadou R$ 625 milhões, dos quais distribuiu R$ 470 milhões para 18,52% dos titulares de obras musicais cadastradas e suas associações.
Alguns compositores, músicos e cantores, vinculados às associações que formam esse escritório de arrecadação, assinaram um manifesto intitulado “Vivo de Música” (apelo que lembra projeto cultural de operadora de telefone móvel), em protesto contra a decisão do Cade. No texto do documento, uma argumentação típica de departamento jurídico para sensibilizar artista a aderir: “…nos juntamos para cobrar nossos direitos por ser impossível que cada um de nós saia por aí esmolando pelo que nos pertence. É a chamada gestão coletiva”.
O Ecad, tomando o seu fundamento original de representante dos autores para arrecadação e distribuição de Direitos Autorais, recorreu da decisão do Cade, sob o argumento de que a música não deve ser comparada a meros produtos de consumo e que o órgão federal estaria aplicando severas penalidades indevidas ao livre exercício dos direitos de quem é titular de obras cadastradas. “A decisão do Cade criminaliza os criadores musicais em privilégio dos interesses de algumas emissoras de TV que insistem em não respeitar os direitos autorais”, diz o Comunicado.
Em tese, não haveria motivo para, em situações de conflitos como essa, o Ecad não ser apoiado por muitos e muitos artistas brasileiros. Por que, então, isso não acontece? Por que um escritório que tem a finalidade de arrecadar e de distribuir valores relativos ao pagamento de Direitos Autorais é sempre tão polêmico? Onde o Ecad perde a razão? Qual o seu Calcanhar de Aquiles, seu ponto fraco? Se é verdade que a ação do Cade decorre de denúncia de um setor econômico interessado em reduzir custos, com sacrifício de criadores de parte dos conteúdos que utiliza para faturar, o que explica a tímida reação dos artistas a seu favor?
O Ecad poderia contar com um exército de autores nessas horas, mas não conta. Em seu sistema de dados, totalmente informatizado e centralizado, “estão catalogadas 3,7 milhões de obras, além de 1,4 milhão de fonogramas, que contabilizam todas as versões registradas de cada música” (http://www.ecad.org.br/), num banco de dados com mais de meio milhão de titulares diferentes. Esse órgão da sociedade civil está presente em todo o território brasileiro e tem poder de polícia na hora de fazer a cobrança em show, televisão, rádio, cinema, internet, circo, teatro, festa, música ao vivo e sonorização ambiental de aproximadamente 465 mil usuários comerciais de música.
Pode-se dizer que, tecnologicamente, o Ecad é um dos órgãos de arrecadação de Direitos Autorais mais bem estruturados do mundo. De arrecadação, vale ressaltar, porque de distribuição ainda deixa muito a desejar. E é neste ponto que está a sua fragilidade. A alegação de que não dá para ficar distribuindo migalhas para os autores das músicas que tocam pouco não se justifica. Tivesse o interesse em ser transparentes e justos, os gestores do órgão facilmente adotariam a tecnologia utilizada pelas instituições financeiras para a administração das poupanças, das contas mais modestas e dos rendimentos das pequenas aplicações. E tudo poderia estar facilmente disponível na internet.
O que acontece, no entanto, é um entrevero burocrático no processo de habilitação de autores e intérpretes à categoria de recebedores dos seus direitos. Ao cadastrar uma obra e obter, por exemplo, o ISRC, que é o código de identificação de fonograma, uma espécie de “CPF” da música gravada, o titular entra numa zona cega, existente na relação entre as associações e o Ecad. O estado crítico dessa faixa nebulosa seria facilmente positivado se o trâmite da obra, com seus respectivos indicadores de execução, fosse totalmente on-line. Algo como o que acontece com a declaração do Imposto de Renda, em que os dados são enviados diretamente para a Receita Federal, sem intermediários. O problema não é, portanto, de recurso de informática, mas, sim, de deformação política do órgão.
A história do Ecad tem muito da sátira antropomórfica “A revolução dos bichos”, escrita por George Orwell (1903 – 1950), na qual os animais de uma fazenda se unem para derrubar seus exploradores humanos, tendo como consequência um novo tipo de escravidão nas mãos de alguns dos seus semelhantes (São Paulo: Companhia das Letras, 2007). O escritor indiano escreveu esse livro com o intuito de “reviver o movimento socialista” (p. 117), depois de uma triste experiência com a perseguição stalinista sofrida pela milícia trotskista, da qual ele fazia parte na luta contra o fascismo, no episódio da Guerra Civil Espanhola (1936 a 1939).
Criado na década de 1970, o Ecad foi uma conquista de compositores, cantores, arranjadores e instrumentistas brasileiros. Diante de uma vida destituída de retribuições justas pelo que produzem, os detentores de Direitos Autorais, assim como os bichos da opressiva granja de Orwell, se organizam, com base no princípio da igualdade, da cooperação e da prosperidade, e passam a ser remunerados pelo seu trabalho de criador. Em “A revolução dos bichos”, os porcos lideram as mudanças, mas acabam contagiados pela excessiva concentração de poder e de privilégios na gestão do bem comum.
A alegoria de George Orwell mostra como, para manterem-se no poder, os porcos cooptam os cachorros, que passam a fazer a segurança do grupo de decisão da nova ordem. Em nome da proteção do coletivo, esse pequeno grupo se reaproxima dos humanos, donos das fazendas vizinhas, com os quais compartilham a exploração da maioria. No prefácio da primeira edição inglesa (1945), o autor recorre ao pensamento de Rosa Luxemburgo (1871 – 1919) para chamar a atenção de que a liberdade “é a liberdade do outro” (p.133).
No livro de Orwell, os sete mandamentos da nova sociedade foram escritos com letras grandes nas paredes, definindo publicamente que os amigos seriam aqueles que andam sobre quatro pernas ou que têm asas, e que qualquer coisa que ande sobre duas pernas seriam os inimigos. Deliberaram que nenhum animal usaria roupa, dormiria em cama, beberia álcool ou mataria outro animal, e que “Todos os animais são iguais” (p.25). Deste modo, como na “Granja dos Bichos”, o Ecad tornou-se essencialmente um aparelho de fortalecimento da “gestão coletiva de direitos”.
Tanto na troça orwelliana quanto na retórica ecadiana, produzir mais e arrecadar mais seria a saída para quem vive na privação. Entretanto, com o passar dos anos e de acordo com as conveniências, os mandamentos de ambos foram sendo alterados. No coletivismo da fazenda, o tamanho das letras diminuiu tanto que alguns bichos pensaram que estivessem com a vista falhando; e, na economia do mundo da música, o trabalho de todos passou a aumentar a arrecadação, mas somente alguns passaram a usufruir dos benefícios. “Todos os bichos são iguais”, afirmava inicialmente o sétimo mandamento. “Todos os bichos são iguais, mas alguns bichos são mais iguais que outros” (p. 106), foi como ficou a frase depois da repintura dos muros da granja.