O desabafo kafkiano de Stoklos
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.5
Quarta-feira, 28 de agosto de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
A atriz Denise Stoklos está celebrando 45 anos do seu Teatro Essencial e escolheu o antológico texto Carta ao Pai, do escritor tcheco Franz Kafka (1883 – 1924) para fazer um desabafo contra o descaso a que a arte em nosso país está submetida, sobretudo o teatro, e em favor do povo brasileiro, moralmente espancado por tantos políticos corruptos e inescrupulosos. Estive na estreia mundial da temporada 2013/14, sexta-feira passada, 23, no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, em São Paulo, quando a solo-performer paranaense mais uma vez transformou o palco em um ambiente de relações reflexivas.
A montagem adaptada da obra epistolar de Kafka segue a linha de trabalho de Stoklos, na qual, como ela mesma explica no texto do convite, “o ator é o fundamento da cena e sua contingência sociopolítica é o ponto de interpretação”. Nesse sistema pessoal de atuação, criado por ela, o ator e o personagem fundem-se na cena teatral, explorando ao máximo a voz, o corpo, a intuição e a consciência, em uma total cumplicidade interpretativa. O Teatro Essencial trabalha com uma espécie de avesso do distanciamento brechtiano, embora ande em linha com a teoria de Brecht (1898 – 1956) pelo seu caráter político e social.
O discurso cênico de Denise Stoklos começa com um trecho impactante da Carta ao Pai: “Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti”. A concentração da artista e a expressividade da sua interpretação envolvem a plateia de teatro vivo. Ela se doa totalmente na peça e todos os seus músculos falam, os dedos dos pés contam da angústia dos assustados com a impotência e a modulação da voz povoa o palco de figuras dramáticas invisíveis. É a atriz como suporte de suas próprias intervenções, em um cenário que conta apenas com um divã, uma luminária e a luz essencial.
A Carta ao Pai foi escrita em 1919, mas nunca foi entregue ao destinatário. Virou clássico da literatura universal, estendendo-se tempo afora por sua força e profundidade de manifestação dos sentimentos de atração e repulsa existentes nas relações onde predomina o autoritarismo. Eis a deixa para Stoklos criticar a desatenção e o desrespeito com que parte significativa da classe política trata a cidadã e o cidadão brasileiros. Sua voz associa-se à voz dos protestos das ruas na repugnância à corrupção e ao espancamento moral da nação. É nesse movimento que ela inclui também uma contestação ao desprezo com que a arte é tratada no Brasil.
Momentos de silêncio e momentos de risos marcam o comportamento da plateia em suas leituras de recepção. O Teatro Essencial tem esse quê de encontro entre artista e público, por criar condições de sentir juntos, de gozar juntos, de amargar juntos o incômodo decorrente da pilantragem que domina a política nacional. Na encenação livre e inconclusiva de Denise Stoklos, a plateia não é tratada como consumidora, mas como cúmplice das escolhas e do argumento cênico. Depois do espetáculo, cada qual leva a sua memória e seus pensamentos para casa, recitando a indignação criativa e ressoando na sinceridade da arte.
Kafka ficou muito insatisfeito com o desprezo que recebeu do pai quando disse que havia encontrado uma noiva. Ele já estava com 36 anos, vivia de trabalhos burocráticos e nem imaginava que um dia seria reconhecido como um dos grandes nomes da literatura mundial. Teria sido esse o fato que o levou a escrever a Carta ao Pai. Foi desse ponto que Denise Stoklos partiu para a criação da mulher casada em crise, cujos problemas se confundem com os do escritor tcheco. O caso é tão grave que ela chega a dizer à psicanalista que até roncando incomoda o marido.
Em outro momento Stoklos faz uma diarista que trabalha na casa dos Kafka. E não se cansa de dizer à dona Júlia, mãe do pequeno Franz, que “o sr. Hermann trata esse menino muito mal”. Conta que estava limpando a casa e ao encontrar uma barata notou que o menino ficou todo nervoso. Assim, a atriz vai construindo pontes com a obra kafkiana; neste caso da barata, com o livro A Metamorfose, no qual o autor conta a história de um rapaz que de tanto viver oprimido pelo trabalho e pela rejeição da família acaba reduzido a um inseto imprestável para a realização de atividades humanas.
O fenômeno do desamparo experimentado por Kafka, compartilhado pelas palavras gestuais e pelos gestos falantes de Denise Stoklos, como possibilidade de reflexão sobre aspectos políticos e culturais do Brasil, é ilustrado no final da peça pela valsa caipira Saudades de Matão (Jorge Galatti, Raul Torres, Antenógenes Silva): “Quando lá no céu, surgiu / Uma peregrina flor (…) Lá no céu / Junto a Deus / Em silêncio / Minha alma descansa (…) Eu lamento / Minha desventura / Desta pobre dor / Lá no céu / Ninguém me diz / Que sofreu tanto assim”, enquanto a atriz se dirige ao público para agradecer os aplausos.