o Brasil e a fórmula USA
Artigo publicado no Jornal O Povo, Segundo Caderno, página 1
Sábado, 07 de fevereiro de 1987 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Quando um relacionamento a dois está desgastado não é difícil ouvir alguém propor um filho como solução. Não importam os motivos que ocasionam a desavença. O negócio é partir pra frente e não ligar para quem vai sofrer as conseqüências. Assim estão os realinhamentos oficiais de poder em relação aos desejos sequiosos da população brasileira. A atual Assembléia Nacional Constituinte já é a cegonha da quinta criança encomendada pelo casal. Isto sem contar com as gestações clandestinas que aumentaram a prole de algumas constituições bastardas anteriores.
Para que haja um controle dos sintomas de fecundidade dos anseios populares, o sistema político ainda apela para os dispositivos utilitários abortivos, financiados há cinco séculos por agentes colonizadores internacionais. Eles ditam as regras do jogo e normalmente, para economizar, forçam operações sem anestesia. A dor causada pela penetração dos bisturis das marcas FMI e Clube de Paris é tamanha que provoca uma perda temporária de consciência. A mais recente síncope que sofremos foi o Plano Cruzado que, por alguns instantes, fez a Nação acreditar em um mundo melhor.
Estava certo Mao Tsé-Tung quando afirmou que “para quem vive no fundo do poço o céu tem as dimensões da boca do poço”. Por isso não é fácil perceber o que realmente está acontecendo com o Brasil. O que se pode ter certeza é de que no corpo da Assembléia instalada no último domingo, há sinais de agressão à democracia. Para desviar a atenção da população, o governou lançou uma série de medidas econômicas sedativas que barafundam a nossa organização social. Na realidade não se poderia esperar outra atitude federal em um país “capitalista no lucro e socialista no prejuízo”, como diz o comentarista Zevi Ghivelder, da tevê Manchete. A cúpula que administra a Nação está pouco preocupada com os sentimentos da população. Afinal, na terra das siglas partidárias de aluguel, a autocracia não é novidade alguma.
Essa briga de pinça entre os que buscam o poder e os que querem nele se manter acelera o sangramento de reservas sedimentadas pelos nossos inanidos movimentos sociais. O eco da campanha pelas “Diretas já” não foi suficiente para coagular os distúrbios das entranhas do Brasil e sua nuliparidade. A Nação precisa parir sua própria história e não ficar viciada em analgésicos para amenizar efeitos infecciosos colaterais. É bom ressaltar que a origem da anticoncepção política que esteriliza o Brasil ganhou força brutal com o golpe militar de 1964. Como a Nova República ainda atravessa o pantanal histórico brasileiro com remos herdados do regime militar e sob a mira dos dentes afiados dos crocodilos do capital internacional, é provável que a Assembléia Nacional Constituinte venha a semoldar, como um dispositivo de polietileno, em qualquer corpo que possa manter a “memória” de sua forma original, após haver sido dobrada ou aparentemente retificada.
O tumulto ocorrido por ocasião da “festa”de instalação da ANC foi uma radiografia do estado de morbidez a que conseguimos chegar no Planalto Central. As manifestações contidas pelos cordões policiais e os discursos da oposição mínima, apenas revelaram, do lado de fora, uma frágil contestação pela elaboração da Carta Magna “entre quatro paredes”. O desconhecimento e o desrespeito aos aspectos culturais que compõem a universalidade do País, também são preocupantes. Vetar a entrada de um grupo indígena, comandado pelo cacique Raoni, por ausência de camisa é, no mínimo, absurdo. Duvido que a guarda do Palácio proíba a entrada de um chefe árabe, que deseje conversar sobre petróleo, simplesmente por ele se apresentar vestido em diallba e turbante. Por que sempre o paletó? Por que sempre o padrão externo? Um País de diversidade cultural tão acentuada não deve conduzir seus acessos por parâmetros estreitos e montados em interesses circunstanciais.
A luta pelo acúmulo de poder pessoal dos políticos desvirtua totalmente a função básica de um texto constitucional, que é a de estabelecer as funções obrigatórias do Estado e de assegurar os direitos fundamentais de cidadania, criando, assim, as condições para a estabilização institucional e sócio-econômica do País. Daí a necessidade de uma Carta Magna ser sintética e clara, com artigos que tratem apenas dos temas imprescindíveis ao ordenamento e independência de uma nação, desprezando problemas conjunturais que somente envelhecem precocemente suas normas essenciais.
Desde que D. Pedro I convocou, em 1822, a primeira Assembléia Nacional Constituinte (que tinha como objetivo legitimar para ele próprio plenos poderes sobre a Nação) que se faz Constituição neste País sem intenções coletivas. O Brasil já elaborou, em seu curto e maquiado período histórico, seis constituições e montou quatro Assembléias constituintes. Todas elas pecando pelo irrealismo de suas propostas e pela preocupação com as minúcias, sempre sugeridas pela conjuntura particular dos fragmentos históricos em que foram redigidas. O resultado da “harmonia e autonomia” dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) está longe do que se aprende na escola. A maioria dos brasileiros ainda não sabe que bicho é esse chamado Estado. Enquanto muitos ainda acreditam que o Estado é o “pai da pobreza” ou o senhor absoluto da verdade, não dá para pensar em mudança. Do mesmo modo em que é praticamente impossível existir ordem em um país onde o Executivo indica os aplicadores das leis e, com o Judiciário sob domínio, burla a ação do Legislativo, instituindo a impunidade oficial.
Governar é animar a convergência das diferenças e não organizar as afinidades sob o arremedo positivista da “ordem e progresso”. A citação da Constituição dos Estados Unidos comumente ocorre quando se comentam as razões de uma Carta Magna. O fato de ela está alcançando seu segundo centenário sem alterações básicas, sempre causa espanto. Pelo menos para quem vive regido por uma colcha de retalhos, como nós brasileiros. Seu segredo, contudo, não é nada mais, nada menos, do que objetividade e clareza de propósitos: são sete artigos, 26 emendas e a vontade pactuada de ser livre. Claro que os redatores da Carta estadunidense deveriam ter divergências mas, acima de seus interesses localizados eles sonhavam com um mundo longe da ingerência da Coroa Britânica. Daí, nasceu um documento conciso, cuja declaração geral de princípios tornou-se possível a ampliação de seu significado, favorecendo o crescimento daquele país.
Dentro das contradições e injustiças da estrutura de riqueza e poder existentes no Brasil, desconheço um registro, que não seja simplesmente retórico, da intenção de formar uma Nação, integrada, com justiça, tranqüilidade interna, promoção do bem-estar geral e da garantia dos benefícios da liberdade. Descontente com tudo isso, o historiador cearense Capistrano de Abreu criou ironicamente uma constituição com apenas dois artigos: 1º. Todo brasileiro deveria ter vergonha na cara, e 2º. Revoguem-se todas as disposições em contrário. E ele tinha razão. Como se já não bastasse o relevante número de constituintes eleitos em nome da grana e da bala, não é possível conceber que dos 599 constituintes haja 22 senadores biônicos! O que fazer para que o Brasil tenha uma Constituição que fale pelo País e não por pequenos grupos hospedados no poder? Ora, se está tão na moda seguir os Estados Unidos, porque não se prepara antes da Constituinte uma Declaração de Independência? Este é o segredo da fórmula USA. Quando em 1776 os norte-americanos se viram sufocados pela dominação inglesa, eles acordaram para a necessidade de serem livres, admitindo que “sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la”.
Entre as inúmeras exposições de motivos que convergiram para a sua Constituição, os ianques citaram a tentativa britânica de “tornar o militar independente do poder civil e a ele superior”. Esta, como outras diversas táticas colonizadoras (àquela época convenientemente reprovadas pela sociedade norte-americana) passaram a ser aplicadas no chamado “Terceiro Mundo” pelos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial. O que, na verdade, o Brasil precisa para tomar novos rumos é partir para conquistar o seu direito de ser Estado livre e independente, desonerando-se de qualquer vassalagem para com o auto-proclamado Primeiro Mundo e se dar ao inteiro poder para “declarar guerra, concluir paz, contratar alianças, estabelecer relações comerciais” e praticar todos os atos e ações a que têm direito os estados independentes. E, em apoio a uma declaração assim, como um dia os norte-americanos tiveram necessidade de fazer, todos os brasileiros também assinariam “com empenho de suas vidas, fortunas e honra”. Seria possível, mas, enquanto o clima for de subserviência e disputas pessoais, o Brasil continuará com uma sociedade anêmica e infectada por sua própria ignorância política e, por conseguinte, colonizada, subdesenvolvida e subnutrida.