Tributo a Víctor Jara
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 11 de setembro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Hoje, 11 de setembro de 2013, está fazendo 40 anos de um dos golpes militares mais violentos ocorridos na América Latina. Mas não quero me deter aos horrores sangrentos dessa escuridão. Por ocasião do bombardeio aéreo patrocinado pelos Estados Unidos ao palácio La Moneda, sede do governo constitucional chileno, muitas luzes de esperança e de compromisso com a vida conseguiram escapar montadas no cavalo alado da arte. Entre elas, a música, a poesia e a memória do pesquisador, diretor de teatro, coreógrafo, compositor e cantor Víctor Jara (1932 – 1973).
Embora muitos tiranos tenham tentado, está provado que não é possível matar um artista, porque a alma do artista confunde-se com a extensão da sua obra. Não escrevo o nome do ditador responsável pelo assassinato de Víctor para não manchar este tributo. O que posso dizer é que ele já passou (1915 – 2006), findou os dias humilhado na galeria dos grandes assassinos da história. Já Víctor, pelo contrário, segue pulsando com sua obra no fogo de puro amor, como diz em “El derecho de vivir en paz”, uma ode de negação à guerra.
A história de Víctor é a história de quem sentiu na pele o efeito direto da desigualdade resultante da vitória da modernidade urbana contra o campo e percebeu as degradantes condições a que foram submetidos operários e camponeses. Essa situação aparece em boa síntese na música “Te recuerdo Amanda”, na qual o autor, em toque macio, voz suave e letra de lirismo visual e dramático, recorre à vida da própria mãe Amanda e do pai Manuel para falar do amor em um sistema social e economicamente injusto.
Víctor Jara nasceu em Chillán Viejo, a 400 km ao sul de Santiago. Seu pai, Manuel Jara, era um trabalhador rural sem terra, que colocava os filhos para trabalhar ainda pequenos e, diante das dificuldades enfrentadas para criar a família, bebia muito e tinha comportamento agressivo em casa. Sua mãe, Amanda Martínez, cantava em casamentos e funerais. Víctor passou a infância em Lonquén, a 32 km da capital, e a adolescência na Población Los Nogales, considerado o primeiro bairro de periferia santiaguino.
O cotidiano do subúrbio aflora tempos depois na música de Víctor Jara. Em “Luchín”, ele conta de um moleque de cinco anos que, molhado e de cara suja, faz de um pequeno espaço nos labirintos da favela um campo de brincadeiras com bola de pano, gato e cachorro, sob o olhar interessado de um cavalo. Essa música tem um significado muito especial, pelo respeito que guarda à cultura da criança. Seus versos dizem que precisamos abrir todas as jaulas para que meninos como Luchín voem como pássaros. Em 1999 fiz uma versão dela para o português, que foi gravada pela cantora Olga Ribeiro no meu CD “Samba-le-lê”.
Quando Víctor começa a se ambientar na cidade, sua mãe não resiste ao ritmo da intensa labuta e morre. Sozinho, ele passa a viver em um seminário redentorista, depois na escola de infantaria, até ingressar no coro da Universidade do Chile. Passa a dormir no camarim do teatro universitário, vivendo uma experiência que um dia inspiraria a música “Lo único que tengo”, na qual questiona como será percebido; como alguém por ele se enamorará, se não tem um lugar na terra, uma casa para chegar. “Y mis manos son lo único que tengo (…) son mi amor e mi sustento”.
Uma das marcas deixadas por Víctor Jara em sua obra é a imagem das mãos. Em “Plegaria a un labrador” ele pede aos agricultores que se levantem para observar a montanha, de onde vem o vento, o sol e a água, com a mesma altivez com que devem olhar para as mãos. Lembra que são os trabalhadores que manejam os cursos dos rios e aos quais cabe semear o voo da própria alma. O repertório de Víctor está cheio de traduções do jeito de sentir, viver e sonhar do povo chileno, com suas alegrias, sofrimentos, contradições e esperanças.
Uma das músicas de Víctor Jara que acho mais lindas é uma em que ele instiga a participação feminina no processo político. “Abre la ventana” foi gravada pela cantora Olga Ribeiro no elepê “América” (1992), que produzimos juntos como parte das manifestações críticas aos cinco séculos de colonização do nosso continente. A letra pede que uma mulher abra a janela para que o sol clareie os rincões de sua casa; que ela olhe para fora e note que a vida não foi feita para rodeá-la de sombras e tristezas. O poeta queria ver mulheres com olhos cheios de luz, mãos cheias de mel e sorrisos brotando como brotam as manhãs pelos jardins.
No dia do golpe, Víctor Jara foi preso juntamente com estudantes e professores da então Universidade Técnica, hoje Usach. Teve as mãos esmagadas e o corpo metralhado dias depois no Estádio Chile, que desde 2003 passou a ser chamado de Estádio Víctor Jara. Com a professora Joan Turner deixou duas filhas, Amanda e Manuela, cujos nomes são homenagens a seus pais. E, por meio de canções como “Vamos por ancho camino”, legou um convite à humanidade: Vamos por um largo caminho (…) o ódio ficou para trás (…) Amigo, teu filho vai; irmão, tua mãe também vai…