Uma nuvem para a cultura
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 18 de setembro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Primeiro, o Ministério da Cultura (MinC) promoveu o reflorestamento cultural brasileiro, por meio de programas do tipo Pontos de Cultura, nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira (2003 – 2010). A cultura no país tinha sido devastada pelo neoliberalismo tucano e sua política de facilitar a ofensiva das corporações que negociam com conteúdos culturais, em nome da competitividade e do bom funcionamento do “livre” mercado.

Depois, veio a salvação dos conteúdos culturais brasileiros, bancada pela ministra Ana de Hollanda (2011 – 2012), contra as multinacionais da economia virtual, que transformaram consultores em gurus da cultura digital, no intuito de desapropriação compulsória dos titulares de direitos autorais, a fim de reduzir seus custos empresariais. Ao invés de ervas daninhas, o reflorestamento da cultura no Brasil tinha sido invadido por sementes transgênicas, a exemplo da espécie Creative Commons, programada em laboratório para comoditizar o patrimônio imaterial brasileiro.

No momento, vemos a ministra da cultura Marta Suplicy empenhada na montagem de um novo “soft power” brasileiro, que ofereça incremento de imagem ao país para as transações interculturais do mundo contemporâneo multipolar. A narrativa de distinção do Brasil nesse diálogo global passa pelo entendimento da nossa fala, da nossa arte e pela valorização da nossa maneira de nos inventar e reinventar, que é a cultura, no que ela traz de contribuição essencial à vida social, política, econômica e ao processo civilizatório.

Ainda que haja controvérsias no percurso trilhado pelo MinC na última década, o importante é que, deixando de lado os pontos conflituosos, é possível perceber uma sequência ordenada positiva nas ações desse ministério. Isso impõe ao país a busca por uma nova fronteira de poder de atração, de força renovadora e de riqueza da sua diversidade cultural, o que significa horizontalizar a oferta cultural em um amplo processo aberto e estruturado de interação e de integração.

Diante dessa sucessão de avanços rumo à construção de uma política cultural, penso que já se poderia trabalhar na implantação de uma espécie de “data center” público de cultura; um suporte tecnológico para rodar o nosso “soft power”, possibilitando armazenagem, processamento e fácil acesso aos bens e serviços culturais do país. Imagino uma infraestrutura de nuvem capaz de abrir perspectivas para o usufruto pleno da produção, bem como para impulsionar negócios e fortalecer nossas relações internacionais.

Convém ressaltar que o mercado chama de “nuvem pública” a estrutura privada de tecnologia da informação, com a qual empresas vendem serviços de armazenagem de dados e de aplicações de computador, em função de redução de investimentos e de aumento de eficiência operacional. Não é a isso que me refiro. Tenho em mente a criação de um suporte da esfera pública federativa, que pode em parte funcionar por regime de parceria com provedores locais, projetado com a finalidade exclusiva de assegurar serviços compartilhados e integrados, tanto para quem tem ofertas culturais quanto para quem quer adquirir bens e contratar serviços culturais.

A chave para a democratização da cultura está no direito mútuo de oportunidade de quem faz poder mostrar e de quem consome poder saber que existe e onde encontrar. Com a cultura na nuvem, as práticas redutoras do mercado obrigam-se a ceder espaço para a preservação e a circulação livre do que se produz no Brasil real. Em um “data center” público, a cadeia de valor cultural ganha mais atração e elasticidade, passando a ser composta diretamente por cada máquina existente no lugar em que alguém possa se conectar, se cadastrar, registrar uma senha e se responsabilizar pelas informações postadas.

Uma nuvem para a cultura seria como descortinar o que somos, não para seguir saqueados por novos lobos em pele de carneiro, mas para usufruirmos da riqueza decorrente da nossa inventividade mestiça. Por meio dessa nuvem pública de informações, qualquer pessoa interessada em comprar uma peça de artesanato, gravar uma música ou adquirir a tela de um artista plástico, teria o contato direto de quem autoriza, de quem vende, seja em sistema de e-commerce, em endereços físicos ou via financiamento coletivo. Nele poderiam ser alojadas ainda as referências bibliográficas virtuais, que ameaçam de descontinuidade a linha evolutiva das pesquisas acadêmicas.

A construção de uma plataforma aberta de cultura realmente livre pode ser feita também por estados e municípios interessados na cultura como fonte de desenvolvimento social, educacional e econômico. Embora sendo algo muito simples e de alimentação coletiva, um centro virtual de democratização da cultura não é fácil de ser implantado, por representar uma ruptura no modelo vigente de exploração comercial de conteúdos culturais. Mas que oxigenaria a nossa vida comunitária e turbinaria o “soft power” brasileiro, ah, disso não tenho dúvida.