Do timbre de todas as ondas
Artigo publicado no Jornal O Povo, Segundo Caderno, página 6
Domingo, 02 de Agosto de 1987 – Fortaleza, Ceará, Brasil
“Oh, dom Raphael / eu vi ali na esquina / o Albertinho Limonta / beijando a Isabel Cristina / Mamãe Dolores falou / Albertinho não me faça sofrer / dom Raphael vai dar a bronca / e vai ser contra o direito de nascer”. Eu tinha oito anos, já se passaram 20. Minha mãe cantava essa música carnavalesca com tanta vibração, acompanhando o timbre inesquecível emitido pelo rádio ABC – Canarinho, a Voz de Ouro – que, às vezes, eu chegava a pensar que sabia da trama desenvolvida na novela. Mas, na verdade, eu sequer entendia o que significava o título “O Direito de Nascer”. Fui crescendo e com o passar dos anos meu pai comprou um Semp, de cinco faixas. Ainda era a pilha. Naquele tempo (um dia desses) a iluminação em Independência era produzida por motor e após o segundo sinal, às 10 horas da noite, a cidade recebia de volta a claridade natural da lua cheia ou os pontos estelares que, como uma ama carinhosa nos cobria de firmamento para as nossas noites sertanejas de sonos profundos.
Foi mexendo no seletor de pontos coloridos do rádio que descobri que o mundo falava línguas diferentes. Por horas e horas eu ficava passando o sintonizador, achando formidável os sons esquisitos das transmissões radiofônicas. Aquilo fazia parte de um contato que eu pensava ter com seres extraterrenos. Para mim não existiam ondas médias, curtas ou freqüências moduladas; o rádio me universalizava, me fazia imaginar o impossível.
Chegou o primeiro aparelho de televisão no município. Um Philco enorme, com móvel de madeira em formato côncavo, que pertencia ao seu Gulim. Depois foi a vez do seu Clodoaldo, do Raimundo Fernandes etc. Na minha casa ainda não havia um desses aparelhos mágicos quando chegou a Copa do Mundo de 1970. Platéias e mais platéias se formavam nas poucas casas que tinham o privilégio e receber o mundo por um tubo de imagens. Acontece que uma coisa me fascinava entre um gol e outro da última das Canarinhas: costumeiramente as pessoas colocavam um rádio sobre o aparelho de TV, do qual baixavam o volume ao máximo. Era mais emocionante! Quem melhor do que um locutor de rádio para encher de calor a fornalha viva de um torcedor? Éramos magnetizados pelo casamento rádio/TV.
Foi através das ondas da Rádio Educadora de Crateús que conheci os Beatles e a certeza de que os jovens poderiam grita Help! por amor. Enquanto seu Toinzinho, meu pai, que hoje não vê mais do que o jornal na televisão, escutava “A Cabana do Pai Tomás” e discutia a novela com a dona Socorro, minha mãe, que costuma fazer crochê acompanhada pelo que tiver no ar, eu começava a perceber nas versões de Renato & seu Blue Caps a necessidade de cantar “Menina linda eu te adoro / tua boneca vai quebrar”, e a preparar o meu coração para anos depois conhecer o grito reverberado por Caetano: “É proibido proibir”.
Chegaram as Histórias em Quadrinhos e os álbuns de figurinhas. Nesta época, o misto (espécie de caminhão de cargas e de passageiros) do seu Mário Souto já estava ultrapassado pelos ônibus tricolores da Auto Viação Horizonte, e Fortaleza se aproximava umas 12 horas de distância. Os super-heróis deram novas dimensões às nossas brincadeiras. Daí em diante não apenas construíamos mais nossos carrinhos com latas de óleo Pajeú e pedaços de madeira, nem simplesmente imitaríamos os feitos do Jerônimo, o Herói do Sertão; recortávamos as figuras das revistinhas e, ao som de qualquer freqüência dessintonizada de rádio, movimentávamos simultaneamente uma porção de personagens, onde cada figura tinha sua personalidade própria e poder de locomoção auxiliado por nossas atentas e ágeis mãos, que seguiam o rádio em background.
Anos 70. A venda de revistas aumentava em Independência. Saíam uns 20 exemplares por semana. Conhecemos as revistas Pop e Placar, que marcaram nosso ingresso no desvendável universo da adolescência. Tínhamos um grupo inspirado no Secos & Molhados e um time de futebol escolar com o nome de Ájax. Ao lado das cantorias divulgadas pelo rádio e dos cantadores das feiras, passamos a viver nova realidade. A realidade das tertúlias, dos Fevers (a la Rossini Pinto) e do esporte.
Jogamos futebol de salão por todos os municípios da região. A equipe ganhou até um hino que, misturando frases de efeito conhecidas, fiz com o Pandé: “O Palmeiras é uma corrente pra frente / cheia de glória e tradição / sua torcida é toda cheia de verdade…”. Era o melhor time da circunvizinhança. Jogávamos todas as semanas, mas diariamente nos reuníamos na calçada do bar do Chico Loureiro para ouvirmos o noticiário esportivo da Rádio Educadora. E tome conversa fiada… Durante a noite, nos dias de jogos dos nossos times preferidos, o rádio voltava novamente a ser o grande companheiro de emoções. E estava lá, quer através da rádio Sociedade da Bahia, Rádio Clube de Pernambuco, Nacional ou Dragão do Mar, o Ceará disputando o Campeonato Nacional ou o Botafogo no Chile, lutando pela Taça Libertadores das Américas.
Há 10 anos, quando me mudei para Fortaleza, o rádio dividia com minhas interrogações o éter do espaço que me abrigava na pensão do seu João Jacaré. Eu não podia mudar de faixa, caso não estivesse gostando, porque o aparelho não era meu e ficava na cozinha, a alguns metros do quarto onde constantemente eu me balançava em uma rede e procurava entender o quanto é importante a gente aprender a ouvir o que as pessoas gostam como uma forma de melhor compreendê-las.
Apesar de hoje ainda conceder ao rádio um lugar no pódio de sua própria grandeza, mantenho com ele uma relação casual, a exemplo das oscilações de ondas curtas que chegam e desaparecem sem dar satisfação, como o meu coração vagabundo.