Sacizada em Bonsucesso
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 02 de outubro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Há vários anos que venho participando, realizando, estimulando e acompanhando festas do Saci em diferentes lugares do Brasil. Não me canso, porém, de ser surpreendido com a riqueza das particularidades reveladas nessas festas. No sábado passado (28/09) fui à Festa do Saci promovida por cinco turmas de estudantes em 8º Ano do Colégio Castro, no bairro de Bonsucesso, a 12 km do centro de Fortaleza, e vi de perto a maravilha dessa ação educativa desenvolvida a partir da cultura, como toda educação deve ser.

A atividade, animada pela professora de Língua Portuguesa, Regina Célia Azevedo, começou meses atrás, com exercícios de produção de gêneros textuais derivados da história e das músicas do meu livro/cd “A Festa do Saci” (Cortez Editora). No dia do evento eles expuseram tudo em um varal de convites, cartas, cardápios, poemas, receitas de bolos, letras de músicas, biografias e outras peças feitas em sala de aula. A lista de convidados incluía Caipora, Peter Pan, Boitatá, Emília, Cabelo d’Água, Cascão, Mãe Natureza e personagens do meu livro, a exemplo do Gnomo-cabeça-de-bunda-de-vagalume.

Os cinco tomos pendurados na quadra de esportes, onde aconteceu a festa, apresentavam um glossário, que eles espirituosamente chamaram de “Sacionário”, no qual foram dadas explicações como a de que o duende Mais-novo-e-sonhador é um ser “que sonha igual às outras crianças” e a que caracteriza o próprio Saci como uma “criatura moleque, cheia de histórias”. Depois de saciado com uma fatia de bolo, passado o momento dos autógrafos e enquanto rolava a sacizada fui entrevistado pelas estudantes Daniara Almeida e Jéssyka Tayanne para o jornal “Curiaí-ó” (que em cearensês quer dizer algo como “presta atenção aí”) e fiquei encantado com a qualidade das reflexões que elas fizeram ao longo da nossa conversa.

O meu entusiasmo com a Festa do Saci está no potencial que ela tem de romper com a zona de comodidade das aparências a que a juventude é empurrada a todo instante pela vulgata do consumismo. Em diversão sacizística o jovem responde às versões da falta com feixes de subjetivações levadas a choque com o que muitas vezes sequer imagina ser real. Refiro-me ao real do psicanalista francês Jacques Lacan (1901 – 1981), aquele que agrega significação à ordem da realidade pela abertura para o simbólico e pela domesticação dessa abertura pelo imaginário. Ao refletir, formular e praticar a festa, o estudante aplaca a força das negações que podem angustiá-lo, preenchendo lacunas de (in)satisfação em uma construção simbólico-imaginária.

Na leitura atenta do livro, na audição repetida das músicas integrantes da narrativa, na produção de variados gêneros textuais, na preparação da festa e sacudindo o esqueleto em ritual de inversão, os estudantes podem contar livremente uns aos outros dos seus mundos, sem as amarras da naturalização das ofertas de padronização cultural e de estilos de vida. A distância fantasística mantida pelo sistema de promoção de falsos desejos e até de falso “Eu” (falso self), que impõe muitas vezes a renúncia da espontaneidade, em nome de uma adaptação aos padrões definidos pelas mídias de massa, perde força na Festa do Saci.

Uma sacizada permite a participação das pessoas como elas são e com o que têm de valor individual e bagagem comunitária. Em uma abordagem pelo ponto de vista do filósofo esloveno Slavoj Žižek eu diria que ela é uma transgressão às posturas padronizadas pela violência político-discursiva de enganosas retóricas de liberdade de escolha como afirmação referencial, podendo, pela perda do receio de contato duplo com o outro e com o ente fantástico, levar os brincantes a exercícios de busca por novos modos de descobrir como o mundo realmente se revela a nós, a partir das condições em que vivemos e da constituição simultânea da realidade pelo simbólico, pelo imaginário e pelo real.

O encanto e o encontro com aspectos da realidade em seu estado mais integral estão na essência da Festa do Saci. Mais do que diversão e aprendizado de brasilidade, quando associada a projetos educativos, como presenciei no colégio fundado e dirigido há 28 anos pelas irmãs Vera e Lúcia Castro, a sacizada é um recurso educativo de grande importância transformadora: “Realizamos uma festa (…) para que o Dia do Saci possa ser o dia da liberdade (…) dia do desafio de meninas e meninos (…) que não querem ser maria-vai-com-as-outras”, diz uma das cartas escritas pelos estudantes da “Sacilândia” do bairro Bonsucesso.

No pensamento do escritor búlgaro Elias Canetti (1905 – 1994), o ruído do espatifar das coisas é um dos principais estímulos dos grupos sociais à destruição porque a relação feita com os sons vitais do novo é como um grito de recém-nascido. Na Festa do Saci, a juventude pode exercitar a descarga de suas angústias de isolamento e indiferença, reatando laços de amizade entre si e com a natureza, sem a aflição destrutiva muitas vezes identificada nas manifestações de quebra de objetos, transportes e prédios. Sacizando, cada um e todos, numa boa, podem provocar rupturas na vidraça de um modelo social que impede o usufruto pleno das possibilidades criadas pela aventura humana.

Veja aqui as fotos da Sacizada!