E agora, você
Artigo publicado no Jornal O Povo, Segundo Caderno, página 1
Quarta-feira, 19 de Agosto de 1987 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Com os olhos cerrados de quem, após ler com atenção, fecha a última página do livro do mundo, Drummond se vai, deixando inúmeras observações em prosa e verso. Que novas crônicas poéticas terá ido buscar? Ele que sempre viu, por imagens caleidoscópicas, além da realidade fria do cotidiano; ele que com alquimia literária tentou amenizar um pouco os aspecto trágicos e sinistros do mundo real. Compreendendo que até mesmo as anormalidades são normais, o poeta de Itabira e do infinito assume agora seu ponto entre as estrelas naturais do cosmo memorial dos homens.
Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987) nunca quis ser imortal, se para sê-lo tivesse que se sujeitar a assumir o fardão da Academia Brasileira de Letras. A ele interessava ser eterno como tudo aquilo que vive uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força é capaz de resgatá-lo. Apesar de sempre estar atento para as novas categorias que a cada instante se criam com o nome de eternidade. “Eterno é tudo que passou, porque passou / é tudo que não passa, pois não houve”. No poema “Infância”, onde narra passagens de sua vida interiorana, ele descobre o valor dos momentos e das coisas simples, concluindo: “Eu não sabia que minha história era mais bonita que a do Robinson Crusoé”. Era. É…
Munido de duas mãos e o sentimento do mundo, Drummond escreveu um novo Hino Nacional. “Precisamos descobrir o Brasil / escondido atrás das florestas (…) O Brasil está dormindo, coitado (…) Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado / ele quer repousar de nossos terríveis carinhos / O Brasil não nos quer / Está farto de nós / Nosso Brasil é no outro mundo / Este não é o Brasil / Nenhum Brasil existe / E acaso existirão os brasileiros?”. Seu profundo sentido poético detectou que nas mesas de bares se aprende que o nacionalismo é uma virtude, mas este mesmo radar do espírito determinou que há uma hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam.
Drummond estava com 85 anos. No meio do seu caminho muitas pedras ficaram para trás – “Tive ouro / tive fazendas / hoje sou funcionário público / Itabira é apenas uma fotografia na parede / mas como dói” – como o inconformismo de que a alma de ferro de sua cidade natal tenha sido vendida para as explorações da Companhia Vale do Rio Doce. Mesmo achando que lutar com palavras é a luta mais vã, o poeta estreou com “Onda”, um poema em prosa, ainda em Itabira, contra os “arrochos” sociais. Depois de passar por Belo Horizonte, já no Rio de Janeiro, por mais de uma década escreveu três vezes por semana no Jornal do Brasil. Aposentado, não parou de cultivar sua verve responsável por quatro dezenas de livros. Aqui-acolá cedia um poema inédito ou dava um alô para “O Cometa Itabirano”, jornal alternativo mineiro com o qual mantinha um “chamego”.
O humorista Millôr Fernandes costuma dizer que, de Itabira, Drummond herdou apenas o brilho das pepitas. E foi montado na luminosidade do ser de sensibilidade ímpar que era, que ele, sem busca de fama nem nada, recebeu a consideração de “poeta maior” e o aval popular nas cores verde-rosa da Estação Primeira de Mangueira no último carnaval. Sempre desfilando talento, humildade e certezas. “Minha vida, nossas vidas / formam um só diamante / Aprendi novas palavras / e tornei outras mais belas / Eu preparo uma canção / que faça acordar os homens / e adormecer as crianças”.
E foi com canções amigas que o poeta chegou a este mundo, mundo vasto mundo. Entre rimas, sem soluções, mas com vontade de existir e, assim, ser parte de tudo o que viu, sentiu, influiu… Do mito da fulana, do Rio São Francisco, da alegria colorida da primavera e da resistência de uma juventude permanente. “O senhor saiu. Hora que volta? Nunca. Nunca de corvo, nunca de São Nunca. Saiu para não voltar”. Misturava com leveza de Poe aos ditos da cultura popular. Infelizmente, como escreveu o poeta cearense Francisco Carvalho, os mais belos poemas ainda são espantosamente desnecessários. “E agora, José?” E agora, você?