A vez do tempo da infância
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 27 de novembro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Foi em nome de garantir um futuro de abundância para os filhos que muitas mães e muitos pais não tiveram tempo de conviver com suas crianças. Foi em nome de assegurar um futuro sustentável para as novas gerações que muitas instituições transformaram meninas e meninos em promessa do que há de vir, tolhendo-lhes muitas vezes o privilégio de viverem a experiência da infância. Foi assim, apenas para citar duas situações de insuficiência das boas intenções, que chegamos ao estágio de violação dos direitos à infância a que chegamos.
É inegável, contudo, a existência de melhorias no tratamento das questões relativas ao mundo infantil nas esferas sociais, educacionais e políticas. No campo da legislação, esses avanços são reais, observando-se os textos das leis de proteção à criança. Leis que pouco funcionam devido ao elevado índice de desinformação da sociedade com relação ao teor dos seus artigos, e à sensação de incapacidade das pessoas no enfrentamento dos entraves burocráticos da justiça. E a criança segue deslocada na dupla direção temporal, do passado, quando comparada ao que não era, e do futuro, por projeção do que não será.
O grande desafio da sociedade nos dias de hoje é o de dar vez ao tempo da infância, um tempo presente, caracterizado pela multiplicidade de comunidades educativas e, por isso mesmo, um tempo que requer mais e mais ações mediadoras e de criação de vínculos e vivências. É nessa perspectiva que vejo o “Prioridade Absoluta”, projeto lançado ontem (26/11) pelo Instituto Alana, na sua sede em São Paulo, que visa assegurar direitos da criança conquistados pela sociedade, mas em muitos casos negligenciados pelos próprios poderes públicos.
Reconhecido pelo indiscutível êxito alcançado com o projeto “Criança e Consumo”, que atua no combate à publicidade dirigida à criança, o Instituto Alana, agora com o “Prioridade Absoluta”, dá mais um passo significativo para a sua contribuição na busca por caminhos transformadores que honrem a infância. O novo projeto joga luzes sobre o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que assegura absoluta prioridade à criança em uma gama de confluências do Estado Democrático de Direito, ao mesmo tempo em que instrumentaliza a sociedade, especialmente os advogados, defensores públicos, promotores, procuradores e juízes que queiram se engajar para pôr em prática as leis de proteção à infância.
O artigo 227 diz o seguinte: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Esses termos de garantia de prioridade foram reforçados em 1990 no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Por meio do “Prioridade Absoluta”, o Alana vai disponibilizar na internet modelos de cartas, petições e outros materiais de suporte à aplicação dessas leis em todas as esferas. O projeto tem por fim ainda estimular ações específicas, em uma extensão capaz de abranger desde insumos a Conselhos Tutelares até propostas de melhor uso do espaço público, como a maravilhosa sugestão das ruas de lazer, onde com um simples requerimento à câmara municipal é possível legalizar o fechamento de logradouros para momentos determinados à reconstituição do tecido social, pelo fortalecimento da vida comunitária e das manifestações culturais.
Para dar vez ao tempo da infância é necessário contar com a confiança da meninada no que é oferecido a ela pelo adulto. Aquela criança que não consegue conduzir suas aventuras por tanta proibição não cabe mais no atual conceito de infância. A estruturação do pensamento de cada menina e de cada menino, agitada pelo trânsito intenso de saberes em rede, tende à desautorização de pais e educadores, por falta de sensação de cumplicidade e de uma razão de ser para a criança. Nada de “o futuro que queremos” sem um “nós” que contemple o interesse e a capacidade de contribuição infantil.
A existência de um tempo comum a todos os fenômenos, pelo entrecruzamento de séries de acontecimentos, é como as estações do ano. Por isso, penso numa analogia fora dos itinerários das sucessões para tratar a criança como uma criança, na qual não dá para olhar para a primavera e esperar expressões de outono na natureza. O universo infantil tem a sua própria massa estelar em estágio de condensação, e as possibilidades de cada menina e de cada menino na experiência da infância são bem mais vigorosas quando mediadas e apoiadas por adultos.
Na sua invenção do conhecimento, a criança sente a importância do adulto, tanto para se perceber segura quanto para aprender a ser autônoma. Nessa caminhada há, entretanto, alguns obstáculos que estão fora da sua condição de superar, que são os códigos da estrutura jurídica. É nesta zona cinzenta que se dá a atuação do projeto “Prioridade Absoluta”, na sua missão de efetivar os direitos e garantias da criança no Brasil, contribuindo para dar à criança a vez do tempo da infância.