Galinhos e a surpresa dos lugares desconhecidos
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 08 de janeiro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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A decisão de ir passar mais de dez dias em Galinhos com a minha família, em um período que incluiu o Natal e o Ano Novo, foi parecida com a determinação do homem que, no “Conto da ilha desconhecida” (Companhia das Letras, SP, 1998), de José Saramago (1922 – 2010), pediu ao rei um barco para navegar em busca de um lugar ainda não explorado. Encontramos essa praia do Rio Grande do Norte por meio de fotos de satélites. Aquela península de quase dez quilômetros, com mar de um lado e rio do outro, pareceu-nos um canto ideal para o exercício da metáfora da aventura possível descrita pelo escritor português.

Como sempre fazemos em nossas viagens, definimos o repertório das músicas a serem ouvidas pela estrada. E nesse barco sonoro nos acompanharam Pink Floyd, Thamires Tannous, Fela Kuti, Criolo, Chico César, Jethro Tull, Emerson Lake & Palmer, Edvaldo Santana e Ná Ozzetti. O percurso de 410 quilômetros foi feito em um dia inteiro porque paramos pelo caminho para apreciar paisagens encantadoras e, claro, para almoçar no restaurante da Oh! Linda Pousada, em Icapuí.

Em terras norte-rio-grandenses, depois de passarmos com o carro na balsa que faz a travessia de Grossos a Areia Branca, vagamos por uma linda estrada à beira-mar, com vegetação de caatinga com mar, cajueiral com mar, coqueiral com mar, carnaubal com mar… Em Dunas do Rosário, o asfalto cruza um trecho entre falésias alaranjadas e praia de areia preta batida, num cenário deslumbrante. Em seguida, atravessamos as salinas por dentro de um espetáculo de espumas de sal que brincavam ao vento como flocos de neve, até chegar ao porto de Galinhos.

Antes de tomar outra balsa, deixamos o carro em um estacionamento público, que tem vigilância 24 horas por dia. Navegamos pelas águas do rio Aratuá e minutos depois chegamos ao píer do vilarejo de dois mil habitantes. Pegamos uma carroça puxada a burro e fomos para a agradável pousada Amagali, do simpático casal François e Suzana, ele belga e ela paraibana. Ficamos contentes por encontrar ali outras famílias com filhos, uma paulistana, outra japonesa e uma terceira ucraniana, além de casais que procuram descanso na reaproximação com a natureza.

O nome Galinhos vem de peixe-galo, vivente marinho raramente encontrado no litoral cearense, onde é conhecido pelos pescadores como galinha-do-mar. Só comi esse peixe uma vez, na década de 1980, durante uma semana que passei embarcado no litoral de Acaraú, fazendo uma reportagem sobre pesca para este Vida & Arte (então Segundo Caderno). É um peixe achatado e de dorso alto, de cor entre o esverdeado e o prata, com carne branca e sem gordura, parecida mesmo com a carne de galinha. Pena que por esses dias eles não costumem aparecer.

No mangue de Galinhos passeamos de barco pelas camboas e vimos várias garças azuis, ave que não conhecíamos. Diferentemente da garça branca, a azul é um pouco arisca, mas na maré baixa, com calma e silencio, pudemos ver de perto suas belas penas e plumagens de um furta-cor variante entre o azul e o cinzento. O passeio de bugre pelo campo dunar, entre torres de usinas eólicas, também é bonito, mas deixa um certo aperto no coração de ver um lugar tão exclusivo não ser ainda uma área de proteção ambiental. Descendo às dunas tomamos banho na Lagoa do Capim, onde a concentração de sal é suficiente para nos impedir de afundar.

A cidade dorme cedo e acorda cedo. Durante o dia as pessoas andam a pé e de carroças. Em todos os dias que passamos por lá só vimos uma única moto na parte de rua pavimentada com paralelepípedos. Nas ruas de areia encontramos crianças brincando a valer. Lindas também as brincadeiras dos cachorros. Toda vez que vejo animais nesse estado de exercício do brincar fico pensando no que nos liga enquanto seres aprendizes do mundo. No final da tarde íamos sempre à padaria comer pão carteira (um tipo de pão doce retangular e de massa fina) e cocorote (um bolo com toque de coco, parecido com o que no Ceará conhecemos como Maria-Maluca).

Na rua da padaria mora o poeta Ivo Rodrigues e sua mulher Santa de Ivo. Casal de conversa boa. Ele anda um tanto angustiado com insuficiência de visão. “Tem coisa que deixa a gente esbagaçado, mas sei lá se isso não é coisa que a gente tem que passar”, mitiga. E recita para nós versos do seu poema Meus tempos de criança: “Hoje meu peito é um depósito de saudades / Veio a idade me fazer ancião / Os meus lamentos amenizam este passado / Tão meditado, transformado em ilusão”. Ela é uma patativa e acende o coração do seu amor cantando músicas que ele compôs sobre a vida do povo do lugar.

Dona Santa de Ivo canta para nós a linda canção que o poeta fez de cabeça para os pescadores de Galinhos. Compartilho um trecho: “Nas águas profundas / Muito além da terra / Indica acento aos picos das serras / As ondas te molham / E o frio é demais / Quando o sol se ausenta / Tristeza te faz”. Ivo Rodrigues está com 72 anos de idade e nasceu na localidade de Quixabeira, então distrito de Touros, onde o litoral do Brasil faz a curva, na esquina geográfica da América do Sul. Mora em Galinhos desde os 12 anos, sempre procurando o impossível, como o homem do conto de Saramago.

Ao chegar em Fortaleza encontrei nas correspondências de fim de ano, um exemplar de “O Conto da Ilha Desconhecida”, presente da querida professora paulistana Eliane Mingues. Na dedicatória, um sinal: “Flávio, este conto é para os que gostam das surpresas das viagens a lugares desconhecidos”… E há quem acredite que todas as ilhas já estão nos mapas.