A função política dos rolezinhos
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 22 de janeiro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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O acontecimento mais badalado do rearranjo de expressões do consumismo deste início de 2014 no Brasil é o rolezinho. A articulação de jovens pelas redes virtuais de relacionamento para encontros em shoppings abalou a tranquilidade de lojistas e de frequentadores desses centros de compra e de lazer. Os garotos e as garotas que estão provocando esse rebuliço todo talvez ainda nem percebam o potencial que têm, o que não tira do rolezinho o caráter de fenômeno socioeconômico de grande valor político.

O participante do rolezinho é alguém que até então apenas executava as decisões de consumo determinadas pelo marketing das marcas. Enquanto era freguês individual, tímido na adaptação ao que é difundido como ideal de felicidade, não causava espanto. À medida que se tornou proativo na realização de encontros presenciais em grupo e na prática da vontade de se mostrar pelos corredores dos shoppings centers, virou ameaça.

Os enxames de adolescentes sempre aconteceram no hall dos cinemas e nas praças de alimentação dos shoppings, desde que a ideologia da insegurança expulsou os jovens dos logradouros públicos. Como até agora isso só ocorria com pessoas não “diferenciadas”, ninguém se assustava. Os rolezinhos estão possibilitando essa clivagem entre consumidores até então supostamente igualados por etiquetas.

Em sua natureza, os rolezinhos não passam de atos de aproximação entre adolescentes que se destacam nas redes virtuais de relacionamentos e seus seguidores. Só para zoar, para serem vistos, flanar, fazer fotos, trocar beijos, ouvir música, dançar, passear, brincar, paquerar, enfim, dizerem uns para os outros que existem. Entenderam que já estavam preparados para se divertir nos lugares que representam a garantia dos direitos dos consumidores.

Nada disso deveria parecer disparatado, se observado como efeito de um pensamento formatado na tendência do deslumbre comportamental amplo, intenso e permanentemente incentivado. Ao tempo em que os rolezinhos demonstram que a sociedade horizontalizada por grifes ganhou força, as atitudes dos seus participantes revelam que a planificação aspiracional interclasses tem muitas controvérsias em seus fundamentos.

Não foi, no entanto, a alegria e a animação desses jovens que mais provocaram temor à cidadela do consumo. O que causou grande perplexidade foi a ousadia decorrente da habilidade de autogestão na busca por divertimento, competência essa geradora de uma escala fora dos parâmetros dominados. Para chegar a isso, o direito de desejar extrapolou o controle da situação de compra, atingindo a necessidade de sentir o outro de perto.

O que há de surpreendente em fenômenos como o dos rolezinhos é que eles respondem à lógica do oculto do aparente, por isso desestabilizam a ordem do entendimento comum. Não se trata de um movimento determinado, apenas de maneiras peculiares de expressão das transformações promovidas pela alteração do perfil econômico da base da pirâmide social brasileira e seus conflitos de influência.

Os rolezinhos também não são manifestações de contrapoder. Eles não têm, por exemplo, o caráter anárquico que deu partida aos movimentos da classe operária na segunda metade do século XIX, nem o pensamento contestador que impulsionou os movimentos de estudantes em meados do século XX. A função política dos rolezinhos é, de um lado, escancarar o distanciamento da juventude brasileira das oportunidades culturais, e, do outro, denunciar o despreparo de uma elite que só sabe falar a língua da coação e da repressão.

O rolezinho é uma prática de busca de aceitação. A ingenuidade de seus participantes os levou a pensar que seriam acolhidos em grupos, caso se apresentassem protegidos pelos escudos das marcas. Não funcionou, foram escorraçados. O sentimento de rejeição, pela negação de um lugar social que nunca tiveram, pode levar a consequências imprevisíveis.

Depois de terem investido suas melhores energias para atender ao chamado do consumismo, não há como simplesmente voltar à situação de marginal. Não é fácil recuperar um sentido de vida que não houve. É curioso como não se aborda essa questão, considerando a possibilidade de os jovens dos rolezinhos terem procurado os shoppings para exibir suas conquistas de consumo em um lugar considerado seguro. Esse tipo de raciocínio parece não caber no debate porque, no fundo, há um entendimento generalizado de que, por serem da periferia, esses jovens carregam em si a marca da violência.

Antes de serem da periferia e consumidoras de produtos de marcas, essas pessoas são jovens inquietos, com uma extraordinária capacidade de comunicação viral. Em termos potenciais, podem ser contados aos milhões por todo o país. No mundo econômico dos serviços, no qual a renda não depende mais exclusivamente de salário, o controle social já não é exclusivo de quem é dono dos meios de produção e dos canais de circulação de mercadorias, como no ciclo industrial. Os tempos mudaram.