A aula da Mariana
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 29 de janeiro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Um princípio essencial da educação é o de que, antes de tudo, para ser educada a pessoa necessita ser aceita. Depois é que vêm as trocas afetivas, as demonstrações de cuidados, os esforços de desenvolvimento emotivo e cognitivo, o refinamento estético, as regras e as convenções sociais. E tudo isso passa a ter maior ou menor proporção, conforme as oportunidades de convivência de cada uma.

Aceitação e convivência são conceitos-basilares da educação integrada que aparecem com muita propriedade nas palestras feitas por Mariana Cavalcante Ferreira, 36 anos, portadora de Síndrome de Down. Ao falar de seu aprendizado a partir de um mundo não convencionado, em uma atividade do Grupo de Trabalho “Gestão democrática: a educação como direito humano”, do Fórum Mundial da Educação, realizado semana passada (21/01) em Canoas (RS), Mariana associou o sucesso da sua educação à constante produção de vínculos.

Analisando o material apresentado pela Mariana não é difícil notar que se trata de uma percepção que ela tem de si mesma e que vai além do explicitamente observável. A experiência de mundo que revela em sua interioridade vem de um saber puro e sincero, de um compartilhar fundado no que há de mais genuíno em sua força original. A educação de convivência manifestada por Mariana facilita a transformação dos ensinamentos das inter-relações em algo associado à sua experiência de Down, sem, no entanto, se prender a ela.

A consciência que Mariana tem da sua condição é um recurso que ela utiliza como força propulsora do seu desenvolvimento e do carisma com que nutre as suas relações. Convidei-a certa vez para uma festa de aniversário, que teria show musical e lançamento de livro, ingredientes de convívio que certamente a agradariam. Ela não foi, mas pediu ao João de Paula, pai dela, que me desse o seguinte recado: “Não vou à sua festa porque estou muito cansada e não quero forçar a minha excepcionalidade”.

A palestra de Mariana é uma aula, no sentido da oferta de conteúdos educacionais que permitem constatações como a de que as pessoas são excluídas porque são impedidas de conviver. Para explicar como tem sido o seu processo de aprendizado, ela começa dizendo que é de um lugar: “Sou de Fortaleza. É longe!”. Fala isso demonstrando sentimento de pertença e orgulho pela cidade de onde aprendeu a ver o mundo. A noção quase altiva do contexto em que cresceu e do seu estado de disfunção cromossômica é outro ponto surpreendente no jeito de Mariana contar de si. “Quando eu nasci foi uma surpresa para os meus pais, porque nasci especial”.

Mariana exalta o amor da família na educação. Diz do seu contentamento por ter sido sempre cuidada pelos pais, irmãs e tios. Desse modo, na condição de tia, retribui os afetos cuidando das sobrinhas Mel, Bia e Isabela, esta ainda na barriga da mãe: “Vocês sabem que a vida de tia não é fácil”, reclama bem humorada. A mesma postura de retribuição é praticada nas relações de amizade e com os seus admiradores. “Eu faço questão de botar o meu nome e uma mensagem de carinho a quem dedico o meu livro”.

Pois é, a Mariana já escreveu um livro com a sua experiência, mas não esconde para ninguém que gosta mesmo é de fazer palestras, das quais se vangloria. Costuma, ao final de suas falas, chamar a plateia para uma roda de integração, com música e braços abertos, aprendida na Biodança, com a sua mãe Ruth Cavalcante e com o seu padrasto César Wagner. Outro dia, em uma palestra em Fortaleza, para pais de pessoas com necessidades especiais, antes do encerramento ela pediu que os participantes ficassem de pé. Quando todos se levantaram ela conclamou: “Agora, aplaudam!”.

Das suas fontes de relacionamento ela ressalta os esportes, mostrando medalhas conquistadas em competições de natação em olimpíadas para pessoas especiais e contando das suas aventuras de jogar capoeira em Canoa Quebrada e Amsterdã; o gosto de “farrear” com o pai pelos bares e de exercitar a aprendizagem vivencial com a mãe, em espaços de educação biocêntrica.

A escola regular foi também fonte de importante interação para a Mariana. Entretanto, quando ela completou 18 anos, disse aos pais que queria ir para a Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). E passou a conviver mais intensamente com outras pessoas que têm Síndrome de Down. Ainda hoje ela vai duas vezes por semana para essa troca de experiências. A busca pela relação com os pares denota uma sábia busca do Si, a fim de dar continuidade ao processo de individuação.

A educação pela convivência exposta na aula da Mariana está também na satisfação com que ela fala do aprendizado de convivência no trabalho. Já foi estagiária nos Correios, vendedora em padaria, integrante de comissão municipal para políticas públicas da pessoa deficiente e há seis anos trabalha no Centro Cultural do Banco do Nordeste, atualmente em tarefas de apoio administrativo. Se o desafio da educação é que cada um ache o seu próprio lugar, a Mariana achou o dela no território dos relacionamentos.