Momento de baixar a bola
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.3
Quarta-feira, 05 de fevereiro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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No jargão futebolístico, a expressão “baixar a bola” quer dizer parar com os chutões descontrolados para o alto, na tentativa de ter o domínio dos passes e da intenção das jogadas. Botar a bola no chão é um recurso de prudência quando a partida está truncada e o time necessita tomar consciência do jogo para encaixar a marcação e armar o ataque. Dentro do campo é assim, mas fora das quatro linhas do gramado, o jogo dos bastidores do maior esporte de massas do planeta é muito mais tenso e nem sempre é possível identificar o juiz para xingar em caso de descontentamento com a arbitragem.

Em meio a tantas transformações e rearranjos econômicos, sociais e políticos por que passa o Brasil, e diante dos escândalos de malversação de recursos públicos na preparação da infraestrutura, somados à subserviência do país aos ditames do modelo de negócio da Fifa, não poderia mesmo ser tranquilo o cenário de realização da Copa do Mundo de 2014, programada para acontecer em doze capitais de estados brasileiros. Muitos valores e práticas entraram em choque e, com uma sociedade mais ativa e sem respostas às suas manifestações, o país rifou a bola para o alto.

Não é preciso entender de futebol para saber dos riscos de uma partida às cabeçadas, onde a atitude de se livrar da bola, mais do que jogo feio e grotesco, revela descontrole e ausência de estilo, o que sempre acaba favorecendo o adversário. Para o povo brasileiro, que torceu pela seleção em todas as copas realizadas até hoje, quer em momentos de ditadura ou de democracia, em circunstâncias de estabilidade econômica ou de crise, não há interesse na quebra dessa longa sequência de vibrações embaladas por lances de paixão por futebol, como um forte traço cultural.

É certo que causa indignação a agressividade com que a Fifa impõe seu modelo de negócio nas geografias em que leva a efeito uma Copa do Mundo. É revoltante também a subserviência dos poderes públicos e dos agentes do mercado de um país como o Brasil, que além de ter a seleção campeã das campeãs mundiais, dispõe da quinta maior população do mundo, com o diferencial comparativo de falar a mesma língua. Entretanto, vale destacar que a falta de percepção desse potencial na hora de defender os interesses do país é um problema atávico que ainda precisa ser superado, haja vista a forma como o Brasil permitiu a exploração do comércio de produtos de informática sem um mínimo respeito sequer ao idioma falado no país.

Há muito contra o que protestar. Especificamente com relação à Copa do Mundo, o que não cabe a essa altura do campeonato é cultivar queixas retardadas. A hora de protestar contra a realização desse evento já passou, teria sido quando o Brasil foi escolhido para sediar o mundial. Agora, os estádios já estão aí e a bola vai rolar. Se está havendo desvios de recursos e eventuais omissões diante de falcatruas, que o Ministério Público seja acionado para apurar e que a justiça seja pressionada a punir os culpados. Ir para as ruas simplesmente tentar inviabilizar a Copa não parece razoável. De mais a mais, fazer esse jogo é marcar gol contra o Brasil.

O momento é de baixar a bola, de tomar consciência do jogo, de atacar e defender o que precisa ser atacado e defendido. O que está em campo é a imagem internacional do Brasil, o patrimônio renovável do futebol, a força integrativa dos brasileiros e a capacidade de juntar povos distintos em torno de uma emulação desportiva de proporção global. Colocar a bola no chão é, antes de tudo, ficarmos atentos às implicações dos nossos protestos, a fim de termos clareza do que queremos obter com a nossa participação e, dessa forma, evitarmos jogar contra nós mesmos. Há muita bola nesse jogo, e muita bola aqui quer dizer muitos interesses políticos, econômicos e de afirmação social, em um cenário interno e externo de disputas pelo poder.

Não dá para vacilar. Não cabem imediatismos nessa partida que começou antes do apito inicial. Protestar é normal, legítimo e demonstração de vitalidade democrática. As vozes das ruas precisam dizer das suas insatisfações, crenças e expectativas frustradas. Sem esse tipo de pressão, os governantes e os empresários, responsáveis pelos atrasos nas obras de infraestrutura de mobilidade urbana e aeroportuária, e pelo desleixo na qualificação das pessoas para as atividades turísticas e culturais, vão seguir fingindo que essa história de legado da Copa não é com eles.

Especificamente contra a Fifa e a CBF há muito o que protestar, e aí sim, nossas contestações podem surtir algum efeito se feitas aproveitando a visibilidade internacional da Copa do Mundo. É importante que a sociedade se mobilize e proteste, separando, repito, o que vale e o que não vale a pena ser atacado. Quem quiser comparecer aos jogos, que compareça, e quem quiser protestar, que proteste. Essa deve ser a regra democrática do jogo de bola coletivo mais popular do mundo. No Brasil, torcer juntos ainda é um importante ponto de coesão social, em meio a um mundo de tantas segregações.