O assalto da consciência
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.3
Quarta-feira, 26 de março de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
O assalto ao Lar Torres de Melo, realizado na quinta-feira passada (20), me deixou por um bom tempo sem saber o que pensar. A ideia de que alguém é capaz de invadir um lugar que abriga pessoas idosas indefesas para roubar-lhes o minguado dinheiro das suas aposentadorias escapa da minha compreensão. Esse tipo de situação extrapola o conceito de crime, enquanto violação da lei, para entrar no estatuto da desintegração dos valores sociais mais elementares.
Temos visto de tudo em termos de violência e, por mais que a crueldade esteja presente em tantos acontecimentos mórbidos e abomináveis, lamentavelmente incorporados aos nossos usos e costumes, o ataque armado a uma entidade de assistência a pessoas em idade avançada é um delito de sentido da vida, um ato de denúncia de extrema vulnerabilidade simbólica.
Uma sociedade sem senso de destino e sem um número razoável de lideranças confiáveis tende a perder os motivos para a existência de regras e passa a operar no mundo subterrâneo do imediatismo. Se os nossos mecanismos de convivência e de padrões sociais não conseguem conversar entre si, fragilizamos todo o nosso sistema de proteção e, acuados, mostramos os dentes, como expressão mais primitiva de defesa.
O fato de o idoso na sociedade hipermoderna não passar de um inútil, por não ser economicamente ativo, colabora para infrações como a ocorrida no Lar Torres de Melo. Se o carimbo que carregam é o de pouca ou nenhuma importância, hipoteticamente não haveria razão para poupá-los da onda de assaltos que já virou meio de vida para muitos.
Os indivíduos que cometeram essa atrocidade não agiram sozinhos. Eles contaram e contam com a cumplicidade de todos os que continuam optando pelas superficialidades e efemeridades das aspirações de consumo em detrimento da experiência estética, do acesso à fruição cultural e da relação afetuosa com a natureza. São representantes de uma sociedade doente, desequilibrada e aflita.
Causa estranheza pensar que os assaltantes dessa centenária instituição assistencial não fizeram aquilo por engano. Eles sabiam que estavam roubando pessoas idosas. E o pior é que, segundo a reportagem “Grupo armado assalta Lar Torres de Melo” (O POVO, Cotidiano, p. 4, 21/03/2014) da jornalista Isabel Costa, o bando sabia inclusive em que sala se encontrava o dinheirinho dos idosos.
Mesmo tendo sido pouco o dinheiro, para os bandidos ele tem o valor do sucesso do roubo. Os assaltantes devem ficar cheios de si quando compram celulares novos, tênis de marca e drogas com grana roubada. Parece mais legítima. A esse tipo de infração e de atitude, não interessa a origem das cédulas. Roubar idosos não é problema para quem não cultiva expectativa de viver mais do que a condição da existência imediata, pois não há velhice na marginalidade.
Vive-se uma situação de generalizado desamparo psicossocial como modo de vida e de conduta. Ao tempo que rejeita a violência, a sociedade parece atraída pelo assaltante, pelo matador, pelo delinquente, por conta do papel de visibilidade que, sob a égide do triunfo da bandidagem, eles ocupam como seres do mundo da violência. Quando um bandido aparece glamourosamente no noticiário ele rouba a nossa coragem.
Impotentes diante dessas contraditórias celebridades, muitos pais reagem proibindo as crianças de brincarem com games de violência, tirando delas, em caso de jogo comedido, muitas vezes possibilidades de formação de um pensamento sobre circunstâncias de predomínio da violência, como se o que se passa em um jogo fosse algo real.
A perspectiva da arte, da literatura e da poesia, mesmo quando seus conteúdos manifestam violência, abre conjeturas de enfrentamento de consequências destrutivas, dificultando, inclusive, a predominância estética do macabro e do escatológico. O que não é possível é a transformação da vida e do viver em uma farsa de honra dos facínoras, porque isso causa decepção e nada é mais perigoso do que esse tipo de desapontamento social.
O quadro pintado pelos assaltantes do Lar Torres de Melo apresenta cenários de um teatro de horrores que requer reformulações de hipóteses da nossa vida em sociedade. Estamos diante de um declínio de valores e princípios, sem os quais não há como pretender um estado de bem estar individual e coletivo. Essa é uma questão que impõe mudanças radicais na nossa consciência, já que a maioria das pessoas não parece aceitar a idiossincrasia dessa conjuntura.
Toda violência estrutural, como a que amargamos na atualidade, carece de um aprofundamento do sentido do viver, a partir da cultura, de forma a sinalizar que isso pode ter um fim. Enquanto não nos damos conta disso, a angústia da insegurança favorece a proliferação de serviços religiosos e de autoajuda, que funcionam como suportes à nossa fraqueza consumista e de egoísmo social. Tais movimentações soam muitas vezes como um controvertido símbolo de declínio da fé e da confiança no progresso ilimitado. O dilema posto abre a questão entre viver bem e evitar morrer de forma banal.