Comidinhas para variar
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 02 de abril de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Fazer comidinhas saborosas é, antes de tudo, uma forma de respeito a quem vai comê-las. Cozinhar é uma habilidade sofisticada, um dom que permite ir abertamente ao encontro do gosto alheio. Quem oferece um prato feito com amor à culinária, narra uma história de empatia muda, que vai além do paladar. A capacidade de preparar iguarias de que os outros vão gostar – ainda que sejam pessoas desconhecidas – é simultaneamente um ato de amor-próprio e de empatia, que se realiza no contentamento pelo saborear do outro.

O desfrutar de um prato tem mão dupla, dá prazer a quem faz e a quem come. É convivência, troca de pequenas delicadezas, mescla de cordialidade, sedução e afeto. A gastronomia é uma atitude de relações íntimas, virtuosas e gentis. O sabor se expressa no olfato. É pelo nariz que sentimos o sublime do gosto, que distinguimos o aroma do que comemos. Mexe com os sentidos, com sensações e, ainda, de quebra, está associado ao cultivo de laços de sociais.

Mas nem tudo são delícias e prazeres no mundo da gastronomia. Como toda atividade humana, ela passa também por situações repugnantes e indesejáveis. O conflito entre a satisfação e o desconforto vivenciado na prática da arte de cozinhar é ponto de tempero na ficção juvenil “Madame Pamplemousse e suas incríveis comidinhas”, de Rupert Kingfisher, com ilustrações de Sue Hellard (WMF Martins Fontes, SP, 2013). Pequeno, bom de ler e de imaginar, o livro do escritor inglês não é desses que a parte gráfica é mais importante do que o conteúdo.

Cheia de encantos, essa obra literária tem no seu formato um quê do seu próprio objeto central de contação, que é a lojinha de iguarias da senhora Pamplemousse, uma exímia preparadora de saborosices. Esse diminuto, desbotado e sombrio estabelecimento é descoberto pela menina Madeleine, quando esta caminha por uma ruela sinuosa de Paris. Na placa sobre a porta, um letreiro com a palavra “Comidinhas” dá o tom de simplicidade de um ambiente surpreendentemente incomum e pleno de coisas incomuns, a começar pela dona do lugar, a Madame Pamplemousse, e pelo seu auxiliar, um gato vira-lata, de nome Camembert.

Madeleine havia saído para fazer compras a mando do seu tio Lard, um sujeito grosseiro, proprietário do restaurante “O guincho do porco”, onde durante as férias a menina trabalhava lavando louça. Isso acontecia porque em todo verão os pais dela viajavam sozinhos e deixavam a filha aos cuidados do tio. Sem medir consequências na sua luta esquizofrênica para se tornar uma celebridade da culinária, ele apostava em fracassados pratos exóticos, como pizza de orelha de porco. Madeleine cozinhava bem, mas o tio não dava a menor chance a ela, pois queria ficar pessoalmente famoso, ser reconhecido como um grande chef, e, assim, não dava espaço para ninguém.

E foi cumprindo as tais ordens do tio que certa vez Madeleine entra, meio por engano e um tanto por curiosidade, na lojinha de Pamplemousse. Fica impactada com as estranhas e raras iguarias com as quais se depara. Não foi por menos, pois ali estavam pendurados embutidos do tipo salame de Minotauro e, nas prateleiras, frascos com rótulos artesanais indicando conteúdos de rabos de escorpião ao alho defumado, miolo de cobra e até patê de peixe-elétrico. Nesses rótulos não existia, porém, nada de ficha nutricional ou relação de ingredientes. Tudo segredo.

Na construção dessa história de encantamentos, cheia de curiosas pistas e descobertas, o autor trabalha com atraentes levezas hiperbólicas que lembram os exageros maravilhosos do escritor italiano Alberto Morávia (1907 – 1990) em suas “Histórias da Pré-História” (Ed. 34, 2003), contos em que, para se ter uma ideia, há personagens cujos pensamentos congelam no ar. Tão fascinada quanto o leitor, a personagem acaba comprando um patê de serpente marinha, que é servido no restaurante de Lard. Os fregueses adoram e a vida de Madeleine se complica mais ainda.

Ela é forçada a se infiltrar na loja das comidinhas para descobrir como e com quê aqueles deliciosos pratos são preparados. É bem interessante como essa parte do drama da meiga Madeleine se desenvolve, entre a sua consciência e o medo provocado pelo tio avarento. Estabelece-se nesse momento uma antinomia infernal, com Lard ameaçando fechar a loja de comidinhas, usando sua influência junto a autoridades, ao tempo em que a garota valoriza o jeito de ser de Pamplemousse. É muito bem tecida a relação de amizade e de afeto desenvolvida entre Madeleine, a Madame e o gato falante.

A menina percebe que, diferentemente do estabelecimento do seu tio – frequentado por turistas e pessoas ricas que supõem ser aquele um bom restaurante, simplesmente por ser tão caro – a lojinha da Madame Pamplemousse tem outros motivos para ser pouco conhecida. Um desses motivos é o fato de a sua dona trabalhar por prazer e o suficiente para se manter, reservando parte do seu tempo para tomar despreocupadamente seu vinho de pétalas de violeta deitada no terraço, em longas conversas com Camembert. Depois dessa experiência, ora no “O guincho do porco” e ora no “Comidinhas”, Madeleine nunca mais foi a mesma.