Confrontos pelo poder
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 11 de junho de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Estão dizendo que, pelo quadro de violência configurado no Brasil, vivemos estatisticamente uma guerra civil. Estão dizendo também que, diante da ascensão de um largo contingente da base da pirâmide social ao patamar de consumidores, essa guerra civil decorre da separação política entre ricos e pobres. Estão dizendo que, por efeito da elitização do futebol pela Fifa, a Copa partiu o país ao meio. E estão dizendo que, dividida, a nação verde-amarela está correndo o risco de avermelhar, pois o comunismo teria voltado a ameaçar o capitalismo primitivo nacional.

Não é de causar surpresa tudo isso que estão dizendo sobre os avanços da democracia empírica brasileira. A incitação, com vistas a instalar um clima de sensação de ausência de autoridade e de produzir fobia política, está no centro da onda conservadora incomodada com o compartilhamento do seu tosco estilo de vida consumista e supérfluo. A raiva dos tradicionais grupos dominantes do país contra os atuais não tem nada de luta de classes, nem de confronto entre direita e esquerda. O que está em questão são sentimentos feudais renitentes, de inconformados com o fato de os mais desfavorecidos não mais existirem apenas para servi-los.

A criação de um amplo mercado interno, fomentado com base em políticas efetivas de transferências de renda, implantadas na última década no Brasil, vem favorecendo pobres e ricos. Essa potencialização democratizada em sua redução hierárquica entre as forças produtivas iniciou consigo um processo de clivagem econômica não-linear e fractalizada, que causa desconforto aos pregadores de apelos fraudulentos à distopia. Quebrou-se uma sequência secular de dependências modeladas pelo pensamento escravocrata e ditatorial. Esta, sim, é a grande mudança em curso na economia e na política brasileira.

Em um ligeiro retrospecto histórico podemos observar as razões da limitação social e política dos grupos dominantes brasileiros. Muitos ainda se sentem estrangeiros colonizando e explorando o país. Guardam em si a atitude extrativista e predatória da derrubada do pau-brasil e do saque de ouro, o cultivo escravocrata e commoditizado da cana-de-açúcar, e a concentração e apropriação de terras ensejadas pelas sesmarias, entradas e bandeiras. Com o deslocamento do eixo político do Nordeste para o Sudeste, o Brasil foi resumido à política do café-com-leite.

O que ainda está na memória estática desses grupos são os acordos entre militares e oligarcas do final do século XIX, e o alinhamento incondicional com os Estados Unidos do pós-Segunda Guerra, quando o Brasil passou a ser o paraíso dos bens supérfluos, interrompendo o processo de industrialização de produtos que substituíssem os importados, e foi rebocado para o transporte sobre pneus, que nos encurralou em sempre insuficientes ruas e rodovias. E há quem atribua o problema dos congestionamentos aos pobres que agora estão podendo comprar carro.

Dentre os fatores que animaram a maioria da população a aproximar-se sucessivamente da vida participativa estão, certamente, a Constituição Cidadã de 1988 e as políticas públicas de promoção da mobilidade social. Essas duas conquistas levaram as pessoas a quererem usufruir dos seus direitos civis e das liberdades de empreender, o que se tornou possível com a criação de novos grupos sociais que disputam espaços de dominância política. Enquanto isso, a mentalidade do servo, do escravo, vai deixando de fazer parte das relações econômicas, e novos militares descobrem a mancha deixada pelas ditaduras na honra da caserna e não aceitam mais apoiar regimes de exceção.

Com os pilares da servidão e da ditadura abalados, os grupos dominantes tradicionais entram em choque com os novos grupos dominantes e, numa luta fraticida pelo poder, arriscam perder os dedos para não entregarem os anéis. A tensão política existe, mas não é luta de classes, entre ricos e pobres, nem de comunismo contra capitalismo, é fruto de egoísmo social. Desprovidos de requinte cultural, pobres esteticamente e nivelados pela comunicação de massa, os tradicionais grupos dominantes brasileiros só conseguiam se distinguir dos grupos dominados, através da ostentação, do consumismo e dos hábitos de desperdício. O conflito que os leva a gastar energia fomentando situações apocalípticas está na perda de exclusividade do seu padrão de desejos vazios, copiado pelo que consideram um monte de pobres, que agora deram para viajar de avião e comer barrinha diet.

O estímulo à criação de um clima de guerra civil, com o intuito de produzir a impressão de falta de ordem e, consequentemente, falta de autoridade, tem efeitos diretos na instabilidade das instituições, no sistema democrático, na economia e na própria política. E não adianta fingir que isso é coisa de ativismo alienado em convergência com aproveitadores de plantão. A evolução da teoria do caos tem demonstrado que mesmo os comportamentos aparentemente aleatórios e imprevisíveis procedem de acordo com regras precisas. E na política não é diferente. É preciso que os grupos sociais se acostumem com o fato de que o poder hoje em dia vai tendo que ser cada vez mais compartilhado.