Marta Aurélia em vadia flor
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 18 de junho de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
A cada espetáculo que vejo da cantora e atriz Marta Aurélia saio revigorado em minhas buscas pela arte como necessidade pessoal e social. Marta tem uma forte personalidade artística. É envolvente. Transforma o espaço onde se apresenta, sem necessidade de grandes aparatos. Preenche o ambiente com sua voz sincera e articulada com um corpo franzino de expressões intensas.
Para oferecer testemunhos de suas múltiplas experiências ela usa a música e o teatro, falando de dor e flor, de tudo que a toca, que a seduz, que mexe com seus sentimentos, pensamentos, pressentimentos. Há um reator de humanidade em sua arte movida a sensações e intuições. Ela é sensorial, animal, emotiva e sentimental. Está sempre em contato com o que dá ritmo ao que a vincula com o mundo.
A arte de Marta Aurélia é gregária, tem um quê de convívio experimental, de reunião íntima e de provocação comportamental, como um convite ao vagabundear despudorado. Foi o que rolou no show Vagabunda que assisti domingo passado (15) na programação do Fuxico do Dragão, em Fortaleza. Mantendo o caráter ritual de suas apresentações, ela vai descontruindo música por música o discurso socialmente construído sobre a vagabundagem.
Acompanhada pelos músicos Ayrton Pessoa, Glauco Leandro, Jorjão Santa Rosa e Tauí Castro, e com a participação do rapper Erivan Produtos do Morro e dos atores Ricardo Tabosa e Denis Lacerda, que fazem os travestis Tábata e Deyduane Piaf, Marta homenageia com esse espetáculo “à vida e à condição de vagueantes, nômades, dos que transitam, passam, sonham, vão e vêm, vêm e vão… aos que não (se) prendem, aos que (se) deixam ir, (se) largam, (se) soltam… aos que se apaixonam, se afetam, devaneiam… aos que amam…”, como recita.
Faz isso com um repertório que tem Minha Flor, Vagabunda Flor entre suas músicas próprias e circulando no Táxi Blue, de Fernando Néri e Eurico Bivar (1950 – 2010), na sensibilidade impudica de Pisa na Fulô, de João do Vale (1934 – 1996) e viajando no mais profundo sentido da ausência, em Sodade, de Armando Zeferino, que virou clássico na voz de Cesária Évora (1941 – 2011). A vadia de Marta Aurélia trafega da ancestralidade de Ô Jandê / Água de Manim, adaptação que ela e o violonista Leonel Fukuda fizeram para um canto Tremembé de Almofala, à crônica urbana Você Sabe Muito Bem o que me Resta, de Daniel Groove.
Nesse espetáculo, ser vagabunda deixa de ser um comportamento irremediavelmente desviante para ser um modo de viver menos atrelado ao falso moralismo e mais próximo dos valores existenciais. Se, tradicionalmente, vagabundar guarda conotações pejorativas, em seu show, Marta Aurélia dispensa autorizações e deixa claro que não há interesse de pedir consentimento para viver à margem da vida homogeneizante, da arte pasteurizada, controlada. Assim, ela escapa aos olhos dos feitores da indústria cultural e passa ao largo dos objetivos de mercado.
Com qualidade artística, técnica e poética, Marta Aurélia propõe a vitalidade ociosa, a cultura de paz, a desaceleração da rotina, a preguiça inventiva e o querer de fato. É invocada. Não teme ser reprovada ou acusada de falta de ambição por ser assim, por sentir assim, por se mostrar fora das aspirações sociais e artísticas predominantes. E tudo isso se revela na intrínseca dramaticidade dos seus espetáculos, bem traduzido no poema Samba-canção, de Ana Cristina César (1952 – 1983), musicado por Calé Alencar: “Fui mulher vulgar / meia-bruxa, meia-fera, (…) malandra, bicha / bem viada, vândala / talvez maquiavélica…”.
Tenho uma admiração especial pelas pessoas múltiplas, como Marta Aurélia, pessoas compostas por muitas vertentes da teia social e cultural. Como jornalista, radialista, atriz, compositora e cantora, ela faz tudo parecer próximo em suas diferenças. São recursos e meios com os quais ela evoca e compartilha afetos, emoções, profissionalismo, relacionamentos, conflitos e conquistas. Marta faz tudo isso bem feito porque está sempre presente com sua densa fé nos desejos e na capacidade de segui-los até a raiz. É uma artista única.
Embora sem ocupar lugar de destaque em seu espetáculo, a maneira como a Marta se veste tem tudo a ver com os movimentos íntimos que apresenta. No show Vagabunda, a interface da artista com a plateia conta com o figurino discreto de Silvana de Deus e Denis Lacerda, um vestido que não briga com seus cabelos assanhados na abertura de espaço de trama relacional. A arte de Marta Aurélia não produz relação de espelhamento, mas de cumplicidade. Quando ela canta La Trama y el Desenlace, de Jorge Drexler, por exemplo, podemos ver seus passos lentos, enquanto beija o chão do bairro.
O que emociona em Marta Aurélia é o entrelace de ímpetos da sua verdade interpretativa, a autenticidade dos seus gestos, o momento de silêncio que se interpõe entre a respiração da cantora e a dicção da banda. Marta é uma artista original, que atua deliberadamente onde e como as coisas lhe dão sentido, em uma troca que multiplica.