Modinhas de todo tempo
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 09 de julho de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Domingo passado, 6, dei com um recital em homenagem aos 150 anos de nascimento do arquiteto da música brasileira, o maestro e agitador cultural Alberto Nepomuceno (1864 – 1920). Estava lá, enfrentando o vento a revirar partituras na área de transeuntes do Centro Dragão do Mar, o tenor Franklin Dantas, acompanhado pelo pianista Eduardo Correia, executando um belo cancioneiro de modinhas de todo tempo, com a participação da soprano Francisca Frota.

Dantas fez um breve recorte da canção brasileira, a partir da obra de Nepomuceno, no que ela colheu dos compositores que vieram antes e do que influenciou aos que chegaram depois. Deliciei-me com aquela música tão singela e ao mesmo tempo tão engrandecedora. Quando vejo essas ousadas e despretensiosas apresentações, feitas a toque de amor por quem não aguenta abandonar a nossa arte musical, reforço em mim a esperança de que ainda descobriremos quem somos e nos daremos mais valor.

A plataforma de inspiração lírica e sentimental desse repertório faz ponte entre a rica influência europeia que desembarcou no Brasil colonial e a música romântica e seresteira desenvolvida até hoje no Brasil. A partir de Alberto Nepomuceno, Franklin Dantas articula autores de todas as regiões do País para cantar e contar da nossa canção, como se letras e melodias fossem sementes da flor de seda, que chamamos de ciúme, em seus largados vagueares pelo mundo ao sabor do vento.

Várias composições desse repertório me tocam pessoalmente, por fazerem parte de momentos especiais da minha vida. Na minha infância, as canções do rádio integravam o ambiente das casas e até das ruas pelas radiadoras das praças das cidades do interior. Por isso, cantei baixinho, enquanto ouvia Franklin Dantas cantando “Quem sabe?”, do compositor paulista Carlos Gomes (1836 – 1896). Naquele momento eu ouvia junto a voz do cantor mineiro Agnaldo Timóteo: “Tão longe / de mim distante / Onde irá, onde irá / teu pensamento”.

O mesmo sentimento e comportamento eu tive logo com as primeiras notas do piano de Eduardo Correia, na introdução de “A deusa da minha rua”, valsa dos compositores cariocas Newton Carlos Teixeira (1916 – 1990) e Jorge Vidal Faraj (1901 – 1963). A imagem da poça d’água espelhou minhas lembranças dos versos “A deusa da minha rua / tem os olhos onde a lua / costuma se embriagar”, e mais uma vez cantarolei um pouco da recordação que guardo em mim do cantor gaúcho Nelson Gonçalves (1919 – 1998), enquanto apreciava a interpretação de Dantas.

Mexeram diretamente comigo também, naquela noite ventilada de domingo, as composições “Casinha Pequenina” (DP) e “Cantigas”, de Alberto Nepomuceno e da poeta portuguesa Branca Colaço (1880 – 1945). A primeira, que tanto cantei quando integrei o coral da Escola Técnica Federal do Ceará (hoje IFCE), sob a regência do saudoso Paulo Abel do Nascimento (1957 – 1992), e a segunda, por me fazer recordar do LP “Modinhas fora de Moda”, da cantora carioca Lenita Bruno (1926 – 1987), que a minha curiosidade de estudante me fez comprar na Francinet Discos, da rua Guilherme Rocha, no centro de Fortaleza, onde eu costumava adquirir discos do circuito alternativo da música.

Franklin Dantas cantou duas modinhas deleitáveis da parceria de Nepomuceno com o poeta cearense Juvenal Galeno (1836 – 1931). Uma, “Medroso de Amor”, que trata da dificuldade de amar “Moreninha não me fites (…) que tenho medo de amores”, gravada em 1968 pela cantora capixaba Nara Leão (1942 – 1989); e a outra, “A Jangada”, na qual narra a aventura do amar, entre a oscilação das ondas e a firmeza da praia: “Minha jangada de vela que vento queres levar? / Tu queres vento de terra ou queres vento do mar?”. Essa foi a última composição de Alberto Nepomuceno, já bem delineada dentro do que seria a brasilidade na música.

O incentivo de Nepomuceno ao pesquisador e compositor carioca Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) entrou no roteiro do recital enchendo o “Fuxico do Dragão” com a ludicidade da sabedoria coletiva em suas narrativas de amorosidade e paixão. “Nessa rua tem um bosque / que se chama solidão / dentro dele mora um anjo / que roubou meu coração”, diz a cantiga de roda popular “Se essa rua fosse minha”, colhida na fartura criativa do Brasil de dentro e, como tantas outras preciosidades da nossa música, popularizada por Villa-Lobos.

Na ponte que liga as modinhas à canção brasileira, o recital espontâneo de Dantas, Correia e Frota foi ao Amazonas e ao Rio de Janeiro buscar a melodia do maestro Cláudio Santoro (1919 – 1989) e a poesia de Vinícius de Moraes (1913 – 1980), com seus atributos de insinuações bossa-novistas. Em “Luar do meu bem”, eles cantam: “O meu amor mora longe / Tão longe / Que já nem sei mais / A lua no céu também mora longe / Mas brilha no mar”; e, em “Amor em lágrimas”, reafirmam o compromisso sempre presente no coração dos que estão distantes de quem ama: “Ouve, amor, o mar que soluça / Na mais triste solidão”.

Desse modesto, mas sincero brinde a Nepomuceno, não faltou o tim-tim da “Valsa Proibida”, opereta do maestro cearense Paurilo Barroso (1894 – 1968), e de “Atrevidinha”, polca do pianista carioca Ernesto Nazareth (1863 – 1934), dentre outras obras renováveis do patrimônio musical brasileiro.