No filosofar da tia Nilda
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 16 de julho de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Já desfrutei de muitas, longas e agradáveis conversas com a tia Nilda, irmã da minha mãe. A cada encontro que tenho com ela, saio me perguntando sobre a fonte de sua sabedoria desenrolada e espirituosa. Agora, que ela está fazendo 80 anos, resolvi deixar de ficar imaginando e parti para perguntar a ela mesma de onde ela tira sua visão e jeito de encarar o mundo e a vida com tanta desenvoltura.

Desde que ficou viúva do meu tio Ferreira, ela decidiu que moraria sozinha, mas completamente acompanhada pelas fotos de familiares, filhas, filhos, genros, netas e netos, dispostas nas paredes do apartamento. Bela índia do sertão dos Inhamuns, com ascendência mesclada de Loyola, Saavedra, Sena Rosa e Paiva, a tia Nilda está permanentemente voltada aos que chegaram ao mundo depois dela.

O senso de vida comunitária do interior produzia um tipo de relação social na qual era comum as pessoas criarem como seus os filhos dos outros. A vida da tia Nilda começa com essa rica experiência: ela foi criada pela minha bisavó, a Mãe Mena, em uma casa onde viviam também seus tios Aurélio, Saladino e Antônio Firmino, que não casaram. “Eu me sentia muito amada. Além disso, a minha avó conversava tudo comigo. Lá em casa não tinha segredo para mim. Tudo podia ser comentado na minha presença. Se fosse um assunto complicado, ela depois orientava a minha compreensão”.

E foi amando incondicionalmente e conversando tudo com as crianças que a tia Nilda educou seus cinco filhos, Ana Márcia, Antônio Francisco, Marciana Régia, Nildinha e Thiago. Da Mãe Mena ela procurou transferir aos filhos inclusive as palavras que dela ouviu em seu leito de morte. Conta que eram duas horas da madrugada quando a avó mandou acordá-la. E disse baixinho: “Minha filha, eu vou morrer lá para as cinco horas da manhã. Você sempre foi uma menina muito boa, muito obediente. Siga assim, sem nunca fazer o mal a ninguém, sem prejudicar a quem quer que seja“.

Por ter sido casada com militar ela morou em vários lugares. Dos mais simples da zona rural, como a tranquilidade da Várzea do Boi (CE), ao agito dos centros urbanos, como Belo Horizonte (MG). No semiárido, saía de barco para pescar no açude e costumava também medicar as crianças da comunidade, mas não havia perspectiva de escolaridade para os filhos. Na capital mineira, a qual já admirava, por conta do que havia lido sobre as geraes nos livros de história, encontrou um bom ensino para os filhos e fez boas e duradouras amizades.

Considera o viver mudando de lugar uma das coisas boas acontecidas em sua vida. “Meus pais queriam que eu casasse com um fazendeiro, mas eu dizia a eles que queria casar com alguém que gostasse de viajar. Eles brincavam comigo dizendo que eu deveria casar, então, com um cigano, para viver pelo mundo”. Recorda que nem tudo são maravilhas quando se vai morar em lugares desconhecidos. Considera muito desagradável o tempo que passou em Barreiras (BA). “Eu queria muito sair de lá, porque era um lugar devasso. Eu não poderia criar os meus filhos numa cidade que tinha um motel em cada esquina”.

De Maranguape, onde residiu por uns tempos, só não gostava de ver a filha mais velha pegando diariamente na madrugada o ônibus de Itapebussu para se deslocar até o colégio da Imaculada Conceição em Fortaleza, onde estudava. Era assim; enquanto batalhavam pela transferência para Fortaleza, davam um jeito de ir avançando na educação das crianças. “Em Fortaleza, concluímos a criação dos nossos cinco filhos e ainda ganhamos três genros que me tratam como mãe. Todos são muito carinhosos. Tenho um orgulho bom de tudo isso; aquele orgulho de felicidade de quem vê os netos bem encaminhados”.

A tia Nilda fala com muita alegria também do grupo de amigas que está sempre se encontrando na Praça da Imprensa, perto da banca de revistas do Sr. Erivaldo. “Elas representam para mim o valor da amizade. Por onde andei, eu nunca fiz intrigados ou deixei inimizades”. As “Meninas da Praça”, como ela apelidou o grupo de amigas atuais, estão continuamente comemorando seus aniversários juntas. Vão jantar no restaurante do Mercadinho Japonês, cada qual pagando o seu, entregando presentes e cantando parabéns.

Quando, anos atrás, a tia Nilda foi informada de que estava com um câncer de mama maligno, o médico achou estranho ela ter reagido com naturalidade. Ela explicou para ele que, mesmo com aquela notícia, não estava se sentindo doente. Foi, então, que um outro médico perguntou se ela não queria o apoio de um psiquiatra. No que ela respondeu: “Doutor, no dia que eu precisar de um psiquiatra por conta de uma coisa dessas é porque não acredito mais em Deus”.

A convicção de que está “preparada para tudo” tem parte na fé e parte na maneira como filtra o que interessa. Ela gosta de costurar ouvindo músicas antigas, algumas da época em que viajava com o Ferreira: “Ele ligava o rádio do carro e ganhávamos a estrada. Procuro recordar coisas boas. Músicas que me trazem tristeza eu não escuto. Recordar para mim é uma vivência e minhas recordações são pelas alegrias que tive na vida”… E, assim, uma filosofada vai puxando a outra.