A decadência exuberante
Artigo publicado na Revista Plural, nº 1, página 5
Quinta-feira, 01 de Outubro de 1998 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Toda grande cidade provoca uma definição da sua imagem. Uma cara formatada ao longo do tempo pelas diferenças que o lugar oferece, pelo que de positivo absorve da interação com o mundo, pelo que representa, pelo grau de consciência cultural da sua gente. Quem não é da terra de alguma coisa, não é de lugar algum. Quem não percebe nem tenta influenciar nos rumos do lugar onde mora, não vai a lugar algum. Quando esse alheamento parece coletivo, então, o futuro torna-se um horizonte turvo, difícil de planejar e profetizar.
Apesar de habitada por mais de dois milhões de almas diretas, Fortaleza ainda não é uma grande cidade, não tem semblante definido, nem personalidade simbólica. É um grande espelho embaçado, carente de olhares atentos. Não basta a beleza evidente. Não basta o amor que temos por ela. Íntima e afetuosa, a cidade amarga estonteada os exageros de uma elite de frívolas megalomanias em seu complexo de inferioridade. Com essa elite de alma rasa e uma legião de subcidadãos, nosso genius loci acaba personificado no estigma caricato da decadência exuberante. Pode não ser o fim, mas é um caminho triste de percorrer.
Vesgos no ponto de vista do desenvolvimento, experimentamos o conflito entre a necessidade criadora e a concentração de renda perversa. Sob o influxo do medo nas ruas sem calçadas, nos desérticos corredores de muros altos, passam acanhados e humilhados pedestres ainda encandeados com os potentes faróis dos carros importados. Dia após dia, essas pupilas aprendem a reduzir a abertura do diafragma ocular obtendo o foco necessário ao apuro da coragem natural do nosso instinto de defesa e sobrevivência. A sabedoria lacaniana diz que o único caminho para um marginal se tornar sujeito é o da violência. Ao cometer um crime, ele passa a existir, saindo do mundo dos excluídos.
É injusto o isolamento de Fortaleza dos centros urbanos brasileiros visivelmente detentores de energia e vitalidade renovadora. A agressividade da construção civil, com seus sofisticados prédios fantasmas, soma-se à ausência de normas públicas regularizadoras do crescimento. Por outro lado, a vasta faixa de lazer gratuito que as praias nos oferecem, respalda a omissão de políticas públicas de entretenimento, inclinando por gravidade de atrações o equilíbrio da convivência social. O resultado desses e de outros paradoxos tem sido uma monotonia vestida de abadá.
Pouco cantada na perplexidade de uma hostilidade popular velada e de uma intelectualidade obediente, Fortaleza está amordaçada por sua pobreza geral opressiva, anunciando um futuro imponderável. E ninguém parece ter permissão para acionar o alarme. São pouco comuns os esforços interpretativos dessa sorte e, sem uma discussão pública inovadora, levamos a vida no limite da tolerância, nessa tristeza concedida. Logo nós, cuja cultura traz em seu código genético a irreverência transformadora do humor, da arte, do tino comercial, da conversa solta e da alegria.
Alguns esforços entrecortados têm produzido trincheiras para a conquista do direito de revelação contundente das preciosidades do nosso patrimônio imaterial. Mas a pólvora ainda é pouca e muitas vezes úmida para que a cidade assuma a sua vocação plural de centro produtor de conceitos estéticos. Apesar da insistência controladora e viciada de alguns párocos culturais, Fortaleza inspira, respira e transpira fenômenos artístico-culturais que amadurecem em sonhos subterrâneos. Sitiados, mas não vencidos.