Lição de casa – Viver com o necessário
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 149 (Editora Riso), p. 20
Edição de agosto de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
No balcão de carnes especiais do Empório Santa Luzia – um dos lugares que vendem carne de carneiro de qualidade em São Paulo – vi filé por mais de R$80,00 o quilo, e costela com o quilo acima de R$100,00. Tudo proveniente da longínqua Nova Zelândia. Fiquei interessado em saber a razão de não ter ali carne de carneiro do semiárido nordestino, onde essa iguaria é parte da tradição gastronômica. Fui informado de que os nossos rebanhos estão fora de padrão e que há grande dificuldade de fornecimento regular.
Contei essa história no estádio Carneirão, no dia em que o meu pai, Toinzinho, foi homenageado na abertura da Feira Agropecuária e do Artesanato de Independência (21 e 22/07/2014), município onde ele nasceu e onde vive há 93 anos. Se meu pai já tinha satisfação por ver o resultado do seu trabalho aproveitado por criadores e pesquisadores da região, agora, reconhecido na própria terra, esse contentamento ganhou materialidade no troféu que recebeu.
Na minha infância e parte da adolescência – na passagem das décadas de 1960 para 1970 – acompanhei de perto as buscas do meu pai por alternativas capazes de elevar a importância econômica da ovinocultura. Aprendi com ele que a realidade não se limita ao que existe, do jeito que existe; há sempre algo a ser feito com inquietas experimentações.
Desde a meninice, ele começou a trabalhar pastoreando carneiros, ovelhas, bodes e cabras na comunidade de criadores da Várzea da Cacimba. Afora a responsabilidade de, quando criança, ser vaqueiro da criação, já maiorzinho trabalhou duro com o pai e com alguns irmãos para fazer do São João uma das fazendas de destaque do município de Independência.
Na adolescência, chegou a estudar no Colégio Cearense, em Fortaleza, mas, em um período de seca rigorosa, foi chamado de volta para trabalhar na fazenda, redefinindo seu destino como homem do campo. Trabalhou vendendo gado em diversas regiões do Ceará, até se estabelecer definitivamente na Fazenda Manchete, onde desenvolveu sistemas próprios de manejo e de desenvolvimento de animais, e de onde partiu para ser conhecido nacionalmente como um dos principais criadores de ovinos do Ceará.
Há anos ele não participa mais de exposições. Mantém um reduzido plantel de ovinos, caprinos e bovinos, com a finalidade de com eles compor um ambiente no qual possa seguir interagindo com a natureza e tendo o que fazer todos os dias. Dessa forma, vive dentro do laboratório que montou para praticar sua crença na cadeia de valor da ovinocultura. Ele tem a tranquilidade dos que fizeram o que deu para fazer, mesmo assim, não se conforma com o fato de no Brasil o consumo dessa carne leve, delicada, saborosa e pouco gordurosa, que é a carne de carneiro, ainda não passar de um quilo ao ano por habitante.
Alegra-me ser filho de alguém tão engenhoso, visto por estudiosos e criadores como um dos pioneiros na experiência de melhoria genética de ovinos no Nordeste. No cruzamento sequenciado e paciente das raças Bergamácia com Morada Nova, ele, simultaneamente com outros pecuaristas e pesquisadores da região, fez surgir em Independência o carneiro “Pelo-de-boi”, que deu origem à raça Santa Inês.
E, como realçou o cerimonialista por ocasião da homenagem, ele foi mais longe: “Conhecido no meio pecuário como o Rei do Bergamácia, por preservar no sertão cearense uma seleção de exemplares registrados e altamente equilibrados dessa raça de procedência italiana, o Sr. Toinzinho avançou na experiência de acasalamento do Bergamácia com o Santa Inês, alcançando a melhoria genética de um animal de porte mais elevado, que passou a ser denominado Deslanado Nordestino”.
Na condição de uma das principais referências da ovinocultura cearense, e, ainda, como destacado e premiado criador de caprinos mestiços das raças Bhuj com Anglonubiana, durante décadas, o meu pai foi presença assídua e marcante nas exposições agropecuárias do Ceará, sobretudo nas de Quixadá, Sobral e Fortaleza. Por seu desempenho como criador de animais competitivos nas pistas, chegou a ser agraciado pela Associação Brasileira de Criadores de Ovinos(ARCO), do Rio Grande do Sul, com o troféu Campeão dos Campeões.
Ao lado dele e da minha mãe Maria do Socorro, com quem está casado desde 1954, ouvi emocionado as palavras finais do locutor, ecoadas pelas caixas de som que ladeiam o palco: “Ele costuma dizer que se orgulha mesmo é de ter educados os filhos com a sua criação de carneiros, sempre dentro de uma filosofia de vida, na qual viver bem é viver na simplicidade, apenas com o necessário”.