O furacão Amazon
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 27 de agosto de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Estive presente na abertura da 23ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, sexta-feira passada (22), e fiquei atento ao burburinho causado pela entrada da Amazon no dia anterior em loja de livro físico no país. Deu para sentir o impacto que a empresa varejista estadunidense causará ao frágil ecossistema editorial brasileiro. Ela já vinha atuando no Brasil desde o final de 2012 com a venda de e-books, e, agora, anuncia um catálogo de 150 mil títulos em português e uma política comercial agressiva, a ponto de causar calafrios e arrepiar editoras e livreiros.
O mercado de livros no Brasil movimenta R$ 5 bilhões ao ano, dos quais cerca de um por cento refere-se ao faturamento de livros digitais. É um mercado desestruturado e vulnerável, com pouco mais de três mil livrarias, o que em contas redondas dá a equivalência de uma livraria para cada 65 mil habitantes. Com o crescimento das megalojas e da venda de “commodities” literárias, inclusive em supermercados, as livrarias menores vão desaparecendo e, com isso, a sociedade vai perdendo a experiência do livro descoberto diretamente nas prateleiras, para depender das ofertas da comunicação mercadológica.
A Amazon traz consigo a realidade da guerra comercial e cultural que vem provocando em países como a França, Alemanha, Reino Unido e nos próprios Estados Unidos, onde controla mais de 60% do mercado de livros e é conhecida como predadora de livrarias. Dentre as acusações feitas à multinacional norte-americana, destaca-se a de aplicar sanções aos seus fornecedores – do tipo retenção de livro em estoque, atraso de envio e elevação extemporânea de preços – a fim de que se submetam aos seus caprichos monopolistas.
Pelos corredores da Bienal ouvi que o comércio de livros é apenas uma forma que a Amazon utiliza para montar um cadastro de consumidores para, em seguida, passar a oferecer outros produtos de maior lucratividade, tais como roupas, brinquedos e eletrônicos. Seu propósito seria fazer em grandes proporções o que algumas lojas de magazine e supermercados fazem de modo mais discreto com seus hotsites específicos para a venda de livros didáticos e de literatura, a exemplo da “Pontocom”, que opera com portfólio das Casas Bahia, Extra, Pontofrio, Barateiro e Partiu Viagens.
Em um primeiro momento a chegada da Amazon é boa para o consumidor e até para sacudir um pouco o mercado, pois utiliza a tática do fácil acesso, da praticidade, agilidade de atendimento, baixos preços, dispensa de frete em compras até R$ 69,00 e da ampliação de sete dias para um mês no prazo de devolução e restituição de dinheiro. O alerta tem sua importância quando indica que a venda de livros com preços abaixo do que as editoras podem praticar terão suas margens recuperadas futuramente, quando não houver mais concorrência.
A situação parece requerer acompanhamento de órgãos como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE (Ministério da Justiça), que zela para que grandes corporações não coloquem em risco o equilíbrio da livre concorrência. Afinal, as denúncias imputadas à Amazon seriam até mais condenáveis do que a prática de dumping – que é quando uma empresa vende produtos muito abaixo do valor justo, a fim de eliminar a concorrência – considerando que ela estaria abusando de um setor para ganhar outros mercados.
A entrada da Amazon com venda de livro físico no Brasil pode estar voltada também para o amplo potencial do mercado de um país proporcionalmente de poucos leitores. Fenômenos como o das vlogueiras Pâm Gonçalves, do canal “Garota It” e Tatiana Feltrin, do “Tiny Little Things”, revelam o quanto umas dicas de livros em vídeos postados na internet podem influenciar milhares de seguidores. O concorrido encontro delas com fãs, realizado no sábado (23) passado na Bienal, é a prova de que há algo novo nas formas de relação com o livro.
No linguajar do marketing, o público prioritário do varejo de livros está dividido entre os “young adult”, adolescentes de 13 a 17 anos, e “new adult”, pessoas na faixa de 18 a 30 anos. Mesmo com 23 anos, Pâm chega bem aos “jovens adultos”, e Tatiana, com 32 anos, atrai normalmente o “novo adulto”. Há toda uma produção de livros para agradar a esse público com literatura de entretenimento e livros pops.
O caso dessas vlogueiras, que assumem em seus vídeos o lugar da vontade do suposto leitor, é bem típico de interpassividade: mesmo que o internauta não vá ler tais livros, a simples informação da existência dos mesmos é o suficiente para contentamento. O sucesso das vlogueiras está no prazer que elas oferecem com o compartilhamento das suas experiências com livros; uma relação dialógica, capaz de tirar o internauta da imobilidade, poupando-o da obrigação da descoberta.
Com ou sem Amazon, temos um grande desafio pela frente se quisermos, como os franceses, assegurar a continuidade das nossas livrarias e encarar o assunto como um compromisso do país com a leitura. Para isso, precisaríamos ter consciência de que a concorrência predatória do livro é uma ameaça à nossa diversidade cultural.