Juçara em pulsão de vida e morte
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 03 de setembro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Talvez até assuste começar dizendo que as duas músicas mais bem comportadas das doze faixas do CD “Encarnado”, da cantora Juçara Marçal, são de autoria de Itamar Assumpção (“E o Quico?”) e Tom Zé (“Não tenha ódio do verão”). Mas é isso mesmo, se considerarmos o seu repertório centrado em composições incitadas pelo crescente mal estar de violência. Obra substantiva, esse disco tem o vigor sonoro das imagens que projeta em ânsia de sobrevivência.

Como uma planta que teima em crescer contra a lei da gravidade e em terreno pedregoso da indústria da morte e do massacre cultural de massa, as músicas de “Encarnado” se retorcem para sair da terra, fixando carbono, em vontade fervorosa de ir ao encontro da luz perdida por trás da poesia da canção. A excelência dos arranjos para um curioso trio de guitarra, rabeca e cavaquinho, e a interpretação rascante e sensível de Juçara, aproximam e dispersam o ruído sujo dos instrumentos com as sonoridades ásperas das palavras.

Do som de “Encarnado” pode-se escutar o eco das contorções reveladoras; ecos que plugam raízes e antenas pela expressão de cada nó produzido pelo movimento forçado e incômodo do corpo e da alma na fuga do chão para ser paisagem. A música de Juçara Marçal nega a anulação do ser diante da inevitabilidade da morte. Ela canta em pulsão de vida e morte, ora em agressividade marcada pela compulsão do retorno à inércia, e ora em vínculos amorosos incitados pelo princípio do prazer.

Entre melodias quebradas e harmonias atordoadas o CD vai, música após música, sangrando em fortes emoções imagéticas. Encarnado não é tintura, não faz de conta; é carne, vermelho, escarlate, berrante, ardente. O “Velho Amarelo” (Rodrigo Campos) quer morrer num dia breve, “hoje não”, porque o cantar na arte de Juçara é um lugar de domínio a empurrar imagens da vida em situação-limite, em cenas desconcertantes, ante a fecundidade dos sentimentos adormecidos, para que despertem da indolência.

Duas guitarras soam soluços indignados nas mãos de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, relatando um fato ocorrido em 1999, que não desprega da memória. Enquanto isso, o sax de Thiago França suspira pela glote metálica, denunciando o espancamento de Damião Ximenes Lopes, 30 anos, na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral, Ceará. “Dá neles, Damião! / Dá sem dó nem piedade / E agradece a bondade e o cuidado de quem te matou”, desafoga Juçara Marçal em “Damião” (Douglas Germano / Everaldo F. da Silva), em contestação ao duro processo de punição dos culpados.

A saga dos indefesos transpassa em dor profunda pelo “Encarnado”. Reflexiva, constritiva, Juçara ressoa em oração na vinheta “Odoya”, que compôs como preparação para a estridente “Ciranda do aborto” (Kiko Dinucci). Nessa faixa, ela vai conversando na cadência das notas até abrir um grito rasgado entre pedaços de sons da guitarra de Kiko Dinucci e do cavaquinho em suspense de Rodrigo Campos, em comoção sonora lixada pelos agudos do rabequeiro suíço Thomas Rohrer. “Vem despedaçado / vem, meu bem querer / vem aqui pra fora / vem me conhecer (…) Pra você descansar no meu braço / aos pedaços”.

Juçara foi buscar nas invencionices de Siba Veloso um romance de cordel, intitulado “A velha da capa preta”, para dizer que a morte já não aguenta mais a concorrência da humanidade. “Já estou me abusando / desse emprego de matar / porque já pude notar / que em todo lugar que eu vou / o povo já se matou”. Talvez para compensar tenha lançado mão da “Canção pra ninar Oxum”, de Douglas Germano. “Hoje eu não vou deixar / ninguém sofrer”, canta e toca kalimba, no tempo em que um pizzicato de guitarra soa como pontos de luz no teto do quarto.

A expressividade de “Encarnado” possibilita o sentir criador, aquele sentir que mexe com a intimidade do essencial. A cada audição, uma nova imagem, um novo sentimento, uma emoção que se revela. É pelo som que o viver rompe com a fronteira do útil. Obras como esta de Juçara Marçal me deixam contente, porque me dizem que o argumento da música fácil, do sentir reprodutor, não tem como dominar a arte sincera. Os artistas que abandonam a si mesmos se esgotam na falta de existência.

A capa do CD “Encarnado”, com um sugestivo desenho de Kiko Dinucci, no qual uma figura feminina dança com lenço vermelho, chama para um tríptico interno que distribui o movimento dos braços nas meias-portas laterais, dando ênfase ao seio de um rosto coberto no painel central, como se fixasse o coração na linguagem das estações e seus ciclos naturais de renovação. A impressão em serigrafia dá um sentido artesanal ao trabalho e permite a experiência tátil da aspereza associada à suavidade.

É surpreendente como um disco com temas tão fortes não seja nervoso; pelo contrário, a topologia psíquica da cantora não deixa dúvidas do lugar amoroso da sua voz, principalmente quando tem vontade de dizer algo mais melódico, como em “João Carranca” (Kiko Dinucci), onde o cavaquinho de Rodrigo Campos é sambador, na narrativa da vulnerabilidade da beleza frente o ciúme; mas sem perder a conexão entre as pulsões escarlates de vida e morte.