Uma diaba no mundo cão
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quinta-feira, 02 de outubro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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No mundo ocorrem muitas coisas com as quais em tese não concordamos, embora muitas vezes, no cotidiano, sejamos cúmplices da nossa própria discordância. É difícil enxergar isso, mas quando lemos contos como “A diaba e sua filha” (Cosac Naify, 2011), infantojuvenil da escritora franco-senegalesa Marie NDiaye, ficamos cara a cara com um desses dilemas, que é a nossa dificuldade diante das diferenças.

Pelo caminho do sensível, inclusive com ilustrações em azulado noturno translúcido, saído de pinceladas pulverizadas da artista egípcia Nadja Fejto, esse conto chama a atenção sobre aspectos ontológicos que nos nossos costumes movem o preconceito. É incrível essa capacidade da narrativa de colocar em choque o que inspira e o que destrói a afeição solidária do humano enquanto ser.

A literatura tem esse fascinante poder de nos colocar diante da realidade, não como gostaríamos que ela fosse, mas redescrita pelo que ela tem de sublime e precário. Em contos como “A diaba” tornamos nossas as emoções da história, os seus sentimentos essenciais e, assim, caímos na real, no insuficiente, no front da nossa batalha entre o que acreditamos e o que somos na prática.

Em leitura leve e curiosa, a voz contadora das palavras nos pluga no cordão umbilical da percepção, ao oferecer uma situação reveladora desse conflito, sem discursos e sem lições de moral, apenas deixando que o leitor se enxergue no que talvez normalmente não saiba ver. A potência desse conto de Marie NDiaye está na sua força de ser mais atrativo do que imperativo.

A leitura de “A diaba e sua filha” produz um certo constrangimento social pelo que gera de noção da impossibilidade da esperança de fuga do mundo cão, onde o poder da repulsa ao outro é mais forte do que a da compaixão. A história revela o tanto que, em vez de encararmos o diferente no que ele tem de atraente, tendemos a optar pela fabulação do medo.

A diaba tem rosto agradável, belos olhos brilhantes, face graciosa e roupas limpas. Num primeiro momento, ela enternece aos personagens anônimos que se dispõem a acolhê-la na busca angustiada por sua filha perdida. Entretanto, tudo isso passa a valer nada quando as pessoas notam seus cascos negros com fenda alongada, seus pés de cabra.

A rejeição à aparência da “diaba” põe em xeque a nossa capacidade de ver o diferente pelo que ele é de fato, à medida que o sentimento de pesar é abruptamente substituído pelo de segurança. Esse conto vem de duas vertentes do imaginário universal: a simbologia diabólica da pata e a representação da maternidade dilacerada pela dor da perda.

Nas aquarelas do pintor ítalo-brasileiro Alfredo Norfini (1867 – 1944), que registrou com maestria a paisagem urbana e rural brasileira na primeira década do século passado, é comum a presença da figura do Saci Pererê com uma pata de bode. O saci foi demonizado por ser um mito originalmente indígena e utilizado pelos nativos para fazer medo aos colonizadores.

A protagonista do conto de Marie NDiaye tem seu paralelo também na lenda mexicana da “Chorona”, uma espécie de alma penada feminina que vive a loucura traumática da mãe que afogou os próprios filhos. Ao vagar lamuriosa pelos povoados perguntando pelos filhos “La Llorona” aterroriza as pessoas, que, como na história da “Diaba”, fecham as portas e apagam as luzes, ante o suposto perigo que ela representa.

O espelho do significado das palavras permite a descoberta do estranho que nos habita, como uma fonte aparentemente externa do si. Leva-nos a detectar a zona de tensão entre o que temos de reconhecível e irreconhecível, em uma trama social marcada por estatísticas de violência, desigualdades, delinquência política, achatamento cultural, consumismo e explosão demográfica, enquanto ecoa a retórica da sustentabilidade.

Fora do ponto de vista dos sentimentos, e indo para a produção de sentido, a leitura desse conto evoca interrogações a respeito do que procuraria a “Diaba” nos dias de hoje, quando o tempo natural sofre a derrota do tempo instrumental. São indagações que cada leitor pode fazer a si mesmo, em quebra da linearidade da percepção rotineira. Talvez haja alguma chave de olhar nessa história da vida comum.

O escritor moçambicano Mia Couto, que assina as orelhas do livro, resume essa obra recorrendo a um provérbio da sua terra natal: “A vida de cada um é um rio”. E diz que na margem desse rio as histórias não têm idade, simplesmente porque toda a narrativa está fora do tempo: “O tempo que nos cabe para viver é alimentado por uma fonte eterna: a infância. E assim dita, a infância não é um tempo passado, mas a capacidade infinita de nos renovarmos entre nascente e estuário”.

Para Couto, a história da “diaba”, contada por Marie NDiaye, confirma “a ideia de que aquilo que chamamos de literatura infantil é, muitas vezes, um estereótipo fundado numa falsa menoridade da criança e na verdadeira arrogância do adulto”. Afeito a esse mesmo entendimento, li “A diaba e sua filha” como um conto atemporal de translações de sentimentos.