Um sítio feito para o reencontro
Jornal O POVO, Vida & Arte, 04/10/2014

Foto: Iana Soares em 20.04.2010
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O casal Firmeza: ele, Estrigas, cientista; ela, Nice, uma artista de “coração puro”. A partida refaz um fio interrompido em 2013

Por Eduarda Talicy

Juntos, Nice e Estrigas construíram o Minimuseu Firmeza, no bairro Mondubim. Eles cultivaram uma união de quase 60 anos e floresceram em cores de bordado e óleo ao longo de cerca de 700 obras

Estrigas acreditava que era a lei dos opostos que o atraía para a sua Nice. Em vídeo de Tibico Brasil, o artista conta que a convivência sempre foi de muito respeito. Nas quase seis décadas de vida partilhada, o casal de artistas moldou os espaços do sítio no bairro Mondubim com cheiros, flores, livros e cores. Ela, amante das rosas, dada aos bordados coloridos e doceira de mão cheia; ele, aos tons pastéis e às pesquisas nas artes plásticas.

“Nice era mais intuitiva e ele, mais racional. E aí se encontravam para produzir uma terceira coisa, que era a liberdade de ser o que queria”, afirma o escritor Flávio Paiva, que relembra o convívio com ambos. “A relação dos dois era de uma liga afetuosa muito forte, mas que não era só isso. Era existência. Fazia com que cada um enxergasse no outro um espaço também seu. Eu achava isso de uma beleza tão grande.”

O curador Carlos Macêdo, amigo do casal e frequentador do sítio, relembra que, “embora fosse um crítico, ele (Estrigas) não fazia intervenções na produção dela (Nice). Eles tinham um respeito muito grande um pelo outro como artistas e eram cúmplices irremediáveis no dia a dia”. Carlos foi o organizador da última exposição das obras de Estrigas, com 20 peças que revelam a riqueza da obra.

O casal Firmeza possui mais de 700 quadros no acervo. A mostra “NicEstrigas”, idealizada por Bené Fontenele, celebra exatamente essa união. Além de obras, fotografias, vídeos e delicadezas de Nice e Nilo, a exposição reúne peças de outros artistas plásticos, como Aldemir Martins, Mário Barata, Barrica, Vicente Leite, Chico Silva e Zenon Barreto. A exposição já esteve em cartaz no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e no Espaço Cultural do Incere.

Nice e Estrigas encontraram-se nos anos 1950, na antiga Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap). Só se interrompeu com a partida de Nice, em 2013. Havia algum tempo, a ausência da artista preenchia os espaços da casa onde moraram. No Museu Firmeza, Estrigas colocou, entre pinturas e prêmios da mulher, uma camisa que Nice usava, estampando num bordado o símbolo de seu signo, câncer.

De acordo com o fotógrafo Descartes Gadelha, Nice era uma artista naïf. “É um termo francês que significa ‘a pureza do coração. É o ingênuo no bom sentido’”, explica. E compara: “A Nice também tinha essa propriedade da bondade. Sempre que você chegava naquele sítio, ela oferecia um doce, uma flor. Agora você imagina, um cientista como o Estrigas ter ao seu lado uma artista naïf como a Nice. Era uma convivência estética e sentimental exemplar. Era o esplendor do amor.”

Numa das entrevistas ao Vida&Arte, em 2013, Estrigas admitiu: “Sem Nice, esfacelou-se uma porção de coisa”. Agora, após mais de um ano de distância, de algum modo, nesse encontro, tudo se refaz.

DEPOIMENTOS
“Estrigas foi um personagem extraordinário desta Fortaleza delicada que não existe mais. Lembro-me de um domingo em que passei em sua casa-museu, na Maraponga, com sua esposa Nici e ele, onde conversamos sobre as artes visuais do Ceará e tive uma aula maravilhosa. Estrigas era, antes de mais nada, um ser humano generoso, sensível, aberto. Ele era também um artista das minúcias, do pequeno formato e um comentarista da vida das artes visuais do Ceará, que vai deixar importantes documentos. Fortaleza precisa agradecer o que Estrigas fez por esta cidade, transformando a sua casa-museu num ponto de referência da nossa vida cultural”.
Paulo Linhares, presidente do Instituto Dragão do Mar

“O Estrigas sempre incorporou os traços de inventividade e beleza que o Ceará emprestou às artes plásticas no País. Seu legado será sempre um conjunto de criações que servirão de espelho às futuras gerações. Creio que a imortalidade que as artes proclamam reserva um lugar de destaque a esse grande nome da nossa Cultura”.
Roberto Cláudio, prefeito de Fortaleza

“De tanto viver, ele morreu. Mais que uma eterna saudade e uma obra artística e intelectual de grande soma, Estrigas nos deixa um exemplo de vida. Com ele, se vai quase um terço da história desta cidade. Sem ele, não teríamos chegado tão longe. Com a Firmeza do nome e a Delicadeza da alma, Estrigas produziu arte e relações que permitiram Fortaleza ser e sonhar-se mais. Bom mesmo seria tê-lo aqui para sempre, mas até as estrelas alguma hora precisam de descanso. E Estrigas, como poucos, brilhou profundamente. Ficamos tristes, mas não às escuras”.
Magela Lima, secretário municipal da Cultura de Fortaleza

Fonte: Jornal O POVO