Ser pessoa – A experiência da infância
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 151 (Editora Riso), p. 20
Edição de outubro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Há um quando no nosso viver em que, por meio do brincar, mais facilmente nos deslocamos das presenças tangíveis para nos apropriarmos do princípio da realidade. Esse quando, naturalmente praticado na infância, não é bem uma época, um período, uma duração qualquer, mas a experiência da nossa matrícula como pessoa no espaço, no tempo e no mundo social.
Isso só acontece porque contamos com a linguagem do brincar e sua potência transacional como idioma da cultura da criança. Meninas e meninos conversam com o mundo exterior por representações na brincadeira conjunta do corpo, da alma e do ambiente. Tudo sem regras, sem intenção, sem finalidade racional. Brincando, dialogam com o desconhecido, aliviam ansiedades e projetam um modo de vida pessoal.
Por ser ação, brincar é verbo. A brincadeira é o seu substantivo. Sem brincar o indivíduo pode crescer como ser humano, mas somente brincando torna-se pessoa de fato. Ser humano é espécie; ser pessoa é cultura. É pelo brincar que a criança se revela gente de maneira plena. Na circunstância que for, através da brincadeira, ela inventa a oportunidade de existir.
Brincadeira é imagem em movimento; brincar, imaginação “concreta”. Pelo brincar e pela brincadeira as crianças de qualquer lugar do mundo estabelecem identificações umas com as outras, inclusive com a fauna e a flora. Sentem-se parte da cultura e da natureza. Comunicam-se por animismo e por trocas de gestos, olhares e performances lúdicas.
Os bichos falam sem precisar das nossas palavras, porque sabem a língua do brincar, além de demonstrarem sentimentos e de terem habilidades sociais. A criança brinca com o animal de estimação como brinca com um brinquedo. Nesse processo de descoberta, ao relacionar-se com uma boneca acha que ela sente fome; quando tenta desmontar um bichinho de estimação não percebe que ele sente dor.
A narrativa do brincar está associada ao universo de vivências da criança, à literatura a que tem acesso, à música que escuta, aos lugares por onde anda, ao que vê, ao que toca, ao que cheira e ao que saboreia. No que fala sozinha, ela conta a história das significações intelectuais, das interpretações emocionais e das sensações cotidianamente processadas na intimidade dos seus pensamentos e sentimentos.
A experiência da infância é um inventar de coisas enxergadas pela sua credulidade no jogo de exploração da noção do si, como parte do meio social, ambiental e espiritual. E o brincar é o idioma universal que transforma o ser humano em pessoa para a sua adaptação à rica, vigorosa e desafiante complexidade do mundo.