A sacizada das crianças surdas
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 22 de outubro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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A cada ano sou surpreendido com as novidades que surgem na forma de relacionamento de crianças e adolescentes com o Saci fora dos aspectos folclóricos. As manifestações de convivência com esse mito da brasilidade é uma prática cultural saudável e educativa. Alegra-me saber desses avanços que, mesmo ainda timidamente, ocorrem na nossa sociedade.

Descobri o interesse da garotada do Instituto Filippo Smaldone pelo Saci na semana passada quando, a convite da professora Ana Cláudia, fui até aquela escola de surdos ser entrevistado por um grupo de dez estudantes, responsáveis pela contação de histórias do meu livro-CD “Se você fosse um saci” (Armazém da Cultura) na feira de literatura da instituição, prevista para o final desde mês e começo de novembro.

Cheguei bem cedo da manhã e fiquei observando a movimentação das primeiras atividades. Meninas e meninos iam chegando da Barra do Ceará, de Maranguape, Pacatuba, enfim, de diversos bairros de Fortaleza e de cidades da região metropolitana em busca de oportunidades educativas voltadas a quem padece de insuficiência auditiva.

Eles se cumprimentam na língua visual-espacial de sinais brasileira, Libras, mas o ambiente é rico de informações sonoras, ruídos e rumores, produzidos inclusive pela emissão de sons vocais. Toca a sirene, informando às educadoras do início das aulas. A professora Neide leva o grupo da contação para o auditório, enquanto sigo para lá com a Ana Cláudia.

Antes de começar a entrevista eles discutem entre si a escolha de um sinal de identificação para mim. Perguntam se eu gosto da letra “F” (o dedo polegar sobre o indicador, com os demais levantados) deslizando de dentro para fora da sobrancelha, e eu confirmo que sim. Eles me ensinam o sinal definido pelo grupo para designar o Saci: o dedo mindinho em linha com o polegar, com os outros três dedos fechados na mão, sendo que o mindinho dá um leve toque no canto da boca em gesto de sorriso.

Na hora, esqueci de perguntar como é que se diz Saci na linguagem comum de sinais, mas depois consegui a resposta no excelente Dicionário de Libras disponibilizado na internet pela Acessibilidade Brasil. É muito parecido: a posição dos dedos é a mesma, mas em vez do mindinho ser levado ao canto da boca, ele toca de modo saltitante o braço esquerdo horizontalizado diante do corpo, no sentido da mão para o cotovelo.

Com tradução simultânea da professora Ana Cláudia e registro fotográfico da professora Carminha, que sugeriu meu livro para o projeto de contação, eles foram se apresentando um a um. Em seguida, fizeram muitas perguntas a respeito da minha infância e do meu trabalho. Algumas profundamente emblemáticas, tanto com relação ao nosso encontro (“Você está assustado por conversar com surdos?”) quanto sobre o tema (“Por que o Saci tem uma perna cortada?”).

Questões como essas dizem muito da percepção desses estudantes com relação ao lugar dos surdos na sociedade e ao uso simbólico da amputação na figura do Saci, como oportunidades de busca de compreensão da maneira de viver, resultante das suas limitações auditivas. Essas indagações chegaram para mim como sentimentos positivos, considerando-as mensagens de quem está ligado nas circunstâncias da vida.

Eles resolveram antecipar para mim a contação em Libras do meu livro “Se você fosse um saci”, prevista para ser feita na Feira de Literatura do Instituto. Foi emocionante o jogo de expressões do conteúdo na coexistência da linguagem das mãos com o texto literário. Os vínculos entre signo e referente ganharam ritmo em frases visuais aplicadas aos momentos da história sequenciados pelas ilustrações do Julião Júnior.

Concluída a contação, eles emendaram um debate entre si, cada qual fazendo a defesa do seu personagem preferido, do ponto de vista dos cuidados com a natureza, e acrescentando situações trazidas em si pelos personagens, de acordo com a imaginação prática de cada um. A professora explicou que essa recriação espontânea é uma característica das comunidades de surdos no seu processo de interpretação do mundo.

O letramento na gramática dos gestos tem a complexidade da transfiguração instantânea. O código de Libras representa uma língua que, na sua função comunicativa, se vale da escrita de outra língua, no caso a portuguesa. É como se, digamos, a cultura de fala das expressões faciais e das articulações corporais estivesse mais inclinada ao plano poético da cultura da oralidade, com distinção marcada pela rima dos movimentos.

Após parabenizá-los pela qualidade das perguntas e pela envolvente contação que eles fizeram em Libras da história que escrevi em português, provoquei-os a fazerem uma festa do Saci, com personagens criados por eles, a fim de se colocarem mais ainda dentro da narrativa. Eles disseram que, levando em conta o fato de, mesmo não escutando melodias e harmonias, eles dançarem com a vibração da música, essa não é uma possibilidade descartável. E pelos abraços que recebi na despedida posso dizer que essa contação foi o primeiro pulo de uma longa sacizada.