Bate estaca na floresta
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Quarta-feira, 17 de Março de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Pensar que o poeta e compositor Eliakin Rufino pode ter razão em sua fina ironia de assegurar que “o maior defensor da Amazônia é o mosquito da malária” e que a maior fatia da verba federal empregada na região é para eliminar o tal mosquito, dá um nó no juízo de qualquer um. É o bizarro contra-senso nacional que vem de Roraima, no melhor estilo eletrônico, cheio de zumbidos dos insetos e sintetizadores para azeitar a engrenagem da música plural brasileira.
Como o ser múltiplo que é, Eliakin levou sua irreverência e oralidade poética para uma experiência de house music, nos confins da Serra de Pacaraima. Compõe entre jazidas e jazigos da terra do ouro, diamante, cassiterita, da madeira e castanha em abundância. A mesma terra invadida por garimpeiros e palco de tantos conflitos envolvendo terras indígenas e pirataria de essências aromática e medicinais. Nessa pegada, já produziu dois CDs, Amazônia Legal (97) e Me Toca (98).
Sua arte de fazer versos, munidos de sonoridade popular tradicional e moderna, rompe o absurdo dos campos de pouso clandestinos mata adentro, para jogar nas pistas de dança a opção de um canhão de laser cheio de sarcasmo e criatividade irrequieta. Enquanto as queimadas devastam rapidamente o que a natureza levou anos para erigir, Eliakin Rufino revida acionando máquinas de gelo e fumaça. A questão da caça predatória aparece no rap “Capivara”. Mas é em “Quero Matar”, que o poeta joga com a antítese da violência: “Quero matar o desejo/Quero matar a paixão/Quero matar a saudade/Quero matar/Quero matar”.
No extremo norte do Brasil, no varal da Linha do Equador, Eliakin já quarou o suficiente e está pronto para ser reconhecido por sua criação excêntrica e contemporânea ao mesmo tempo. Assim como as ostras, não tendo força para banir o agressor do seu meio, o poeta segrega emoção e vai cobrindo a adversidade com sentimentos suaves e apurados que se solidificam em poemas e letras de músicas. E algumas dessas obras são verdadeiras pérolas.
O primeiro disco está mais pleno de manifestações autênticas e geniais. A faixa “Amazônia Legal” resume o descaso na região em um passeio crítico e largado ao longo do “quintal federal”. Em “Tudo Índio”, dá pra sentir a situação difícil da gente nativa que vive na periferia da capital Boa Vista. Sobrevivência de biscates, entre desempregadas domésticas e a meninada fazendo papel de sí mesma nas festas de boi-bumbá das associações de bairro e conselhos indigenistas.
Essa verve cortante e leve como a imaginação não alcança o mesmo elã no segundo disco. A proposta de fazer o CD “Me Toque” mais romântico anuncia claramente essa intenção. Embora preservando o olhar enviesado e inventivo do autor, a exemplo do reggae “Carinho de Punhal”, no qual ele expõe facetas das “contradições do amor e a busca da harmonia dos contrários”, parece que falta alguma coisa da expectativa criada pelo “Amazônia Legal”. Ambos são descuidados tecnicamente, mas a essência merece respeito, atenção e eleva o espírito mestiço e inventivo da nossa biodiversidade cultural.