Narrativas pantaneiras
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 12 de novembro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Em viagem a Corumbá (MS) procurei algum livro que expressasse o modo de pensar da gente pantaneira, sua gramática cultural, sua geografia imaginária. Poderia ser história de índio, vaqueiro, espanhol, bandeirante, sulista, cavalo, gado, enfim, narrativa pantaneira. Não foi fácil, mas encontrei um romance com histórias de fazendas, fartas em renúncias e atrações, compensações do destino, perdas e resiliências, fé, amor, sexo, moral de perdão, labuta e poesia, amizade e final feliz.

No prólogo de “No coração do Pantanal” (Parceria Editorial, Niterói, 2001), os autores Sylvio Primo e Anna Yallouz fazem uma tentadora promessa de autenticidade dos personagens, com seus costumes e sutilezas de traços pessoais. E pedem que o leitor ofereça a esses personagens anônimos uma oportunidade de sobrevivência e de projeção. Ele, jornalista mineiro, originário das fazendas pantaneiras, e ela, escritora carioca, apaixonada pela natureza e pela vida no campo.

Assim, o livro fala de um mundo de trabalho tocado a sonhos, no qual a poesia e a música brotam a todo instante como parte do viver. “Quando a palavra é bonita / Nos envolve, nos excita” (p. 138), diz o improviso de uma personagem. Essa sensibilidade do verso ganha destaque nas cenas de retiradas de gado, que eles chamam de “comitivas”, ocasiões em que se cavalgam por cinco dias dentro d’água. Nos pontos de parada, os boiadeiros recorrem à música e aos causos para ficarem despertos. “É necessário acender uma fogueira e mantê-la acesa a noite inteira; parece que a fumaça e o fogo distraem, amansam o gado e servem também para espantar as onças” (p. 24).

A trama se dá em fazendas das sub-regiões pantaneiras de Nabileque e Nhecolândia, num tempo em que até as vacas atendiam pelo nome. “Naquelas remotas épocas havia homens que invadiam as terras, cercavam, punham o gado e diziam que eram deles e acabou-se. Eram os posseiros. Se alguém fosse tomar satisfações, estava arriscado a morrer (…) praticamente a ocupação primitiva do Pantanal foi essa” (p. 136). Vi imagens desses desbravadores no livro “Pantanal – Pioneiros” (Ed. Senado, Brasília, 2011), de Abílio Leite de Barros, irmão do poeta Manoel de Barros, cuja família tem raízes na Fazenda Rancharia, da Nhecolândia.

Por se dar no tempo em que a pecuária acontecia nos campos e alagados naturais das planícies pantaneiras, o enredo de “No coração do Pantanal” entra em choque com o atual desequilíbrio da relação entre ambiente e produção. A poética do verde, das águas e do toque do berrante vem sendo corroída pela exploração agressiva de ferro e manganês e pelo avanço das plantações de cana de açúcar, que empurram o gado para fora das planícies, forçando desmatamentos para a criação de pastagem e para a produção de carvão vegetal, assoreando rios e comprometendo o ecossistema.

O livro de Primo e Yallouz expõe página por página a paixão do pantaneiro pelo lugar onde vive: “Não falta nada naquele pedaço de paraíso” (p. 15); “Quando o vento arrasta o tapete de folhagens que está sob os seus pés, você tem a nítida sensação de que está levitando” (p. 16); “Se existe paraíso na face da terra, uma boa parte dele está no Pantanal” (p. 46); “Considero um prêmio ter nascido aqui (…) Fabuloso Pantanal” (p. 83); “O espelho das águas desse caudaloso rio Paraguai é fascinante. Dá vontade de tocá-lo como os galhos daquelas privilegiadas árvores ribeirinhas” (p. 216).

A região é banhada por vários rios, sendo o rio Paraguai o mais importante deles. Nos períodos das cheias, quando a natureza reabastece a planície de nutrientes, os campos são alagados, formando baías e corichos. Aprendi nesse livro que baías são partes baixas que acumulam água, independentemente da ligação com rios, enquanto corichos são as baías vinculadas a rios. Algumas dessas baías são chamadas de salinas, por manterem ao longo de sua forma arredondada um círculo de sal e de areia.

O fato de viver uma vida saudável, usufruindo do ar puro e da íntima relação com a natureza, possibilita ao habitante do Pantanal uma inspirada forma de contar de si. Vai soltando as rédeas do pensamento e deixando a história rolar: “Numa das mais lindas manhãs de primavera…” (p. 22); “Bela noite de música e poesia (…) Noitada de arte” (p. 79); “Diz que quer me fazer uns cafunés e me dizer umas poesias” (p. 84). Pode ser falando do roubo da mulher amada na garupa de um cavalo ou fazendo aproximações de protagonistas, como ocorre na alusão à Marília de Dirceu, da lírica de Tomas Antonio Gonzaga (1744 – 1810).

A voz que conduz o leitor pela história de “No coração do Pantanal” tem uma forte característica da oralidade. Em um determinado trecho, o narrador diz que está se lembrando de um caso interessante que gostaria de contar: “Há muitos anos, lá pros lados de Aquidauana, havia uma senhora de quem não consigo me lembrar do nome”. Segue falando, falando e, linhas depois, faz uma pausa: “Agora estou lembrando o nome dela: era Mafalda” (p. 94). E no meio disso tudo, histórias de amor, com caldo afrodisíaco de piranha.