Consciência Marupiara
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 19 de novembro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Conheci uma escola que prioriza a literatura ao invés dos livros didáticos no processo de alfabetização. Ao longo do ano, o exercício de redescrever a realidade é feito com a presença de dezenas de autores que passam por lá trocando ideias com os estudantes. Fui convidado pela bibliotecária Rosa Cleide e recebido por duas estudantes do 6º Ano, a Clara e a Ana Júlia. Elas demonstraram uma animação radiante por todo o tempo em que me apresentaram as diversas áreas da escola, que fica localizada no Jardim Vila Carrão, zona leste de São Paulo.
O Colégio Marupiara é cheio de boas e curiosas revelações. Começa por ser uma escola dirigida por descendentes de japoneses, Mariê e Cláudio, da vizinha colônia de Vila Nova Manchester, com nome em tupi-guarani, que quer dizer “ternura e sabedoria”. Com esses dois princípios unificados em uma só formulação e trabalhando o conceito de “rede de vivências e saberes”, esse território educativo tem cerca de 650 alunos, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, com poucos estudantes em cada sala de aula.
O bairro, que no século XIX foi ocupado por plantações de café, com uma grande senzala, tem hoje em suas terras altas prédios residenciais e comerciais de classe média e média alta. Dá para notar claramente na Vila Carrão os efeitos da elevação da renda do brasileiro ocorrida na última década, inclusive no que diz respeito à qualidade dos hotéis, a existência de um grande shopping center (Anália Franco) e um movimentado Parque Esportivo dos Trabalhadores.
Por conta de um projeto de estudos transdisciplinar, coordenado pela professora de Português, Michele Dtka, e desenvolvido nas turmas de 6º Ano com o meu livro-CD “A festa do saci” (Cortez Editora, 2007), passei toda a manhã desta segunda-feira (17) no Colégio Marupiara. A turma estava animada. Uns tinham visto saci, outros ainda estavam no estágio de perder o medo do Pererê, e todos haviam viajado a São Luiz do Paraitinga, onde puderam observar Saci e fazer oficina de máscaras.
Foi uma manhã intensa, com ex-alunos e mais de quinze convidados para atividades do “1º Encontro Consciência em Movimento”, organizado sob a orientação da professora Marina Paiva, por meio do qual a escola amplia o enfoque da Semana da Consciência Negra, em debates de estudantes e educadoras com autores e pensadores de diversas áreas artísticas, de direitos humanos, educação e, óbvio, literatura, sobre “qual sociedade somos e qual desejamos ser”.
O evento é transmitido aos pais pela internet, que podem acompanhar em tempo real a mesa de discussão, com temas englobando desigualdade no Brasil, Ditadura Militar, polaridade partidária, preconceito e diversidade. Entre os convidados, o jornalista Cadão Volpato, autor de “Pessoas que passam pelos sonhos” (Cosac Naify, 2013), o ilustrador Fê (Fernando Luiz), da coluna do José Simão na Folha de São Paulo, a psicóloga Vera Paiva, filha do deputado Rubens Paiva, desaparecido durante o regime civil-militar, e o deputado estadual paulista Adriano Diogo, da Comissão da Verdade.
Nas salas de aula, palestras, apresentações e conversas simultâneas sobre literatura infantil e infanto-juvenil, perspectivas de vida profissional e acadêmica dos jovens na sociedade brasileira, consumismo e SACIologia. No intervalo, crianças e adolescentes produziam intervenções artísticas no pátio e na quadra aberta, com a participação do ex-aluno e grafiteiro Guilherme Gallé. Mais do que essa formidável atitude de educar a partir da cultura, numa dinâmica impulsionada pelas artes plásticas, música e teatro, o que o Marupiara faz é promover a liberdade de informação.
E promover liberdade de informação é um dos grandes desafios da educação brasileira. A omissão diante da informação oculta ou da informação pulverizada acelera a expansão da opinião odienta vigente, sobretudo, nas redes sociais. O potencial explosivo da opinião irrefletida do desinformado, que repassa conteúdos abusivos nas redes sociais sem checar a fonte, sem se preocupar com a veracidade do que compartilha, e sem senso crítico com relação aos interesses que movem as mídias é um grave problema da atualidade.
Pluralidade de opinião não é somente o direito de se expressar. Além da diversidade de opiniões, precisamos de diversidade de informações confiáveis, a fim de evitarmos uma sociedade leviana. O debate sistemático de temas relevantes, com menos polarizações e mais angulações, permite aos estudantes a formação de um juízo próprio sobre o que se passa na vida social e política do País, de modo que possam se livrar da atração provocada pela energia do espaço vazio da desinformação.
A consciência Marupiara é um exemplo de transformação do espaço escolar em território de reflexões e vivências sociais, capaz de ensejar pensamento e ação, esperança e indignação, a partir do etos Brasil, com suas contradições e riquezas culturais. O bom de projetos como o “Consciências em Movimento” é que eles possibilitam o despertar da juventude para o desenvolvimento de um vocabulário do interesse comum e da melhoria da qualidade participativa.