Histórias do Museu do Mar
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 14 de janeiro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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A chegada a São Francisco do Sul, em Santa Catarina, é um espetáculo da natureza em conjugação de floresta e água. A velha “São Chico”, como é amorosamente chamada, foi uma ilha até o aterramento feito para o acesso rodoviário de safras graneleiras e produtos industrializados que cortou a comunicação das águas entre o canal do rio Palmital e o mar. Nem por isso o lugar perdeu o charme de cidade portuária totalmente integrada ao verde das encostas da Serra do Mar.

Entre a Baía da Babitonga e o litoral Atlântico, a bela cidade catarinense divide-se em duas configurações ao longo da sua liga verde habitada por pouco mais de 40 mil pessoas: a parte histórica, com casario centenário super bonito, mas um tanto refém das movimentações portuárias; e a parte urbanizada das praias, com comércio agitado, mas carente de conteúdos culturais.

A relação de São Francisco do Sul com as navegações se deu logo em 1504, comecinho do Brasil colonial, com a chegada à ilha do veleiro L’Espoir, da expedição francesa de Binot de Gonneville. A elevação à vila deu-se na segunda metade do século XVII. O passeio pelas calçadas e ruas da cidade velha, com seus muros de pedra e cimento interligando trapiches, é muito gostoso, sobretudo à noite, quando a brisa acaricia a paisagem.

Do outro lado, em mar aberto, um estirão de praias oferece ampla infraestrutura de entretenimento e lazer. A predominância é de casas de veraneio e há um sem-número de lojas de modas e acessórios, bares, restaurantes, sorveterias e toda sorte de ofertas de um balneário de intensa movimentação. Na ponta que une o mar e as águas da baía existe um morro verde com um forte no topo, cujos alojamentos militares funcionam como colônia de férias.

A minha vontade de conhecer São Francisco do Sul vinha desde a década de 1990, quando o navegador paulista Amyr Klink chegou a Fortaleza contando da implantação de um museu do mar naquele paraíso catarinense. Em uma reunião do Pacto de Cooperação entre governos, iniciativa privada e sociedade civil, realizada no Hotel Colonial (demolido tempos depois) na Praia de Iracema, ele disponibilizou gratuitamente o seu escritório de projetos para a construção de um Museu da Jangada no Ceará.

Embora reconhecendo a importância da jangada para a cultura cearense e o encanto que sua sofisticação tecnológica causava ao navegador, propusemos, e ele aceitou, pensarmos também em um museu do mar, não somente focado em embarcações, mas um espaço caracterizado pelas manifestações culturais da pintura, música, arquitetura, poesia e culinária geradas a partir da relação da gente cearense com o mar ao longo do tempo.

Amyr explicou que o Brasil é considerado o país com a maior variedade de embarcações do mundo, por ter barcos ajustados às mais diversas condições da sua infinidade de rios, de reservatórios e vasto litoral. Ele estava empolgado com o museu de São Francisco do Sul e queria colaborar na criação de um marco náutico de grande envergadura em Fortaleza. E fez propostas concretas, com argumentações e esboços gráficos. Entretanto, não conseguiu romper a barreira da insensibilidade das nossas lideranças políticas e empresariais.

O pior é que cerca de uma década depois o governo cearense anunciou a intenção de fazer em Fortaleza algo parecido com o que seria o Museu do Mar. A notícia foi espalhada como novidade. A diferença da proposta oficial era que no lugar de Amyr Klink aparecia o nome do arquiteto Oscar Niemeyer (1907 – 2012). As imagens das maquetes foram publicadas na imprensa, algo com forma mista de “nave espacial com diamante”.

E, para completar, pouco tempo depois foram iniciadas as tratativas para a construção do Acquário de Fortaleza. O que essas três iniciativas têm em comum, fora estarem envolvidas com água, é que todas foram pensadas para a Praia de Iracema. O turismo agradece, mas desdenhar de ofertas como a que foi feita pelo navegador Amyr Klink me parece muito desperdício de oportunidade cultural. Sem um espaço para a dinamização da relação estética da gente cearense com o mar, deixamos de nos fortalecer no que nos diferencia e nos torna fortes.

Santa Catarina pensou e agiu diferente. O Museu Nacional do Mar de São Francisco do Sul reúne embarcações representativas do patrimônio naval brasileiro e conta dos saberes das nossas culturas ribeirinhas e litorâneas. Em salas temáticas, montadas em dois pavimentos, estão expostos originais de canoas de um pau só, canoas esculpidas, coloridas baleeiras de casco liso, traineiras, botes, saveiros, jangadas de cinco paus e jangada de tábuas. Todos com suas características tradicionais e respectivas tecnologias.

O Museu do Mar, que nos inspirou, mas que não fomos capazes de tornar realidade para nós, foi instalado nos armazéns onde em 1903 a extinta Companhia de Navegação Hoepcke abriu sua filial em São Francisco do Sul. A visitação começa com uma máxima romana que atravessou o oceano com os portugueses: “Navegar é preciso. Viver não é preciso”. Preciso, diga-se de passagem, no sentido de exatidão e não de necessidade.