INVOCADO – A força e o gozo da intermistura
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 154 (Editora Riso), p. 20
Edição de janeiro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Publiquei, nos últimos dez anos, cinco livros-CDs infantis e infantojuvenis, quatro pela Cortez Editora e um pelo Armazém da Cultura. Como percebo que essa combinação produz ótimos impulsos facilitadores do envolvimento das crianças, decidi fazer o livro-CD “Invocado – um jeito brasileiro de ser musical” (Armazém da Cultura) no mesmo formato, para jovens e adultos. A novidade nesse novo trabalho é que, ao invés de o CD ser encartado na parte interna do livro, ele faz parte da própria capa, assumindo um papel de ilustração e de suporte de áudio a um só tempo.
Mais do que sobre música, espero, com o “Invocado”, estar contribuindo para uma discussão sobre a centralidade no âmbito da cultura, ante os novos tempos e os novos modos de formação de atores sociais, nas suas dimensões de sociabilidade, comunicação, consumo autoral, intercâmbios afetivos, atemporalidade e multietnicidade. O que estou propondo com esse livro-CD é uma superação da sucessão linear e fechada do acesso descendente e empobrecedor da nossa relação com a música.
A chave do Invocado é a força e o gozo da intermistura. Por ser um ensaio-memorial, com variantes etnográficas, senti a necessidade de ilustrar minha fala agregando músicas que potencializassem o discurso. Dai um repertório colhido do etos cearense, num espectro capaz de ir desde Abidoral Jamacaru a Alberto Nepomuceno, passando por Luís Fidelis, Xerém, Evaldo Gouveia, Messias Holanda, Neo Pinel e Petrúcio Maia.
Na busca de nodos referenciais, em dia com os rearranjos sociais vividos atualmente no Brasil, comecei a pensar em um conceito que pudesse representar o domínio da vontade frente o disfarce. Foi então que procurei o Orlângelo Leal, da banda Dona Zefinha, e desenvolvemos juntos o conceito de invocado, como alguém inventivo, que resolve, que vai além das expectativas, e que tem a capacidade de contemplar as belezas do mundo e de invocar o canto das musas.
Para a produção musical do CD, convidamos um velho parceiro, o André Magalhães, paulistano bom de brasilidade, que está morando no Ceará. O André propôs e a Dona Zefinha topou de pronto gravar tudo sem fones de ouvido, equilibrando os diversos instrumentos na acústica de uma mesma sala, onde os músicos puderam se expor de forma criativa, deixando florescer a versão de cada música. E nessa invocative entrou banjo, rabeca, pife, ferros, pandeiro árabe, pandeirão, pilão, sementes, vassoura na tabua de roupa e metais, dentre outros instrumentos. O Gustavo Portela participou de algumas gravações tocando baixo.
A ideia de convidar uma cantora africana, de uma região fora da corrente congolesa, tão presente na música oficial brasileira, está exatamente vinculada à proposta de dar visibilidade a outros brasis e outras áfricas da nossa cultura musical. E a excelente cantora e dançarina Fanta Konatê, que gentilmente aceitou participar do nosso projeto, é um exemplo de artista autêntica do oeste africano, comprometida com a música no sentido “invocado”.
Parto do princípio de que o fato de desperdiçarmos a excepcional riqueza da ampla produção musical brasileira não é um problema da música, mas de complacência social. O pior é que, paralelo a isso, tenho a convicção da importância da música no caráter existencial da nossa alma miscigenada. Se eu estiver certo, temos um paradoxo cultural a resolver. Há mais de um século, o maestro Alberto Nepomuceno percebeu essa questão e trabalhou para potencializar as bases multiétnicas e abertas da nossa música.
Acontece que a historiografia e a indústria cultural, com o patrocínio dos governos Vargas e Juscelino, decidiram, primeiro com a chegada do rádio e depois a da televisão, modelar e propalar, de modo desconexo e fortuito, o samba e a bossa-nova como vórtices da nossa música, reduzindo a potência da música instintiva e orgânica que reverbera por dentro da experiência brasileira.
Embora os exemplos que utilizo no livro-CD estejam concentrados em obras de autores e intérpretes cearense, falo de música brasileira. A música feita no Ceará é música brasileira. O “Invocado” é um fenômeno da brasilidade. As influências políticas e mercadológicas fazem parte dos processos culturais tanto quanto a liberdade de aceitar e rejeitar o senso dominante. A sociedade das comunicações em redes está necessitando de opiniões divergentes, a fim de poder observar outras configurações, que não as de traços prevalentes. É saudável, pois alimenta utopias.