Biografia do oiti morto
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Ele foi esquartejado a motosserra e facão em pleno domingo de sol. Folhas, pedaços de galhos e toras amputadas espalharam-se pelo asfalto da avenida interditada por cones dos poderes privados, autorizados pelos órgãos públicos (in)competentes. Os transeuntes que presenciaram o crime e ficaram indiferentes morreram logo com ele; os que se indignaram ainda podem sobreviver na seiva da sua memória.

As árvores são ligas de harmonia na vida social; elas contribuem para a catálise das experiências, estimulando apropriações simbólicas do espaço público. O pé de oiti da esquina da avenida Rui Barbosa com rua Tenente Benévolo talvez não tenha feito nada de heroico para merecer atenção especial, mas, como todo ser vivo, merece uma biografia.

Muita gente olha para as plantas como se elas não fossem seres vivos, como se não tivessem individualidades, não bebessem da mesma água que bebemos, não respirassem, não nascessem, crescessem, se reproduzissem e morressem. Mais do que cumprir os ciclos gerais dos estágios do viver, as árvores estão integradas ao mundo espiritual da natureza.

Mesmo quando solitárias em uma rua qualquer, as árvores são solidárias; estão sempre à espera de algum pássaro que queira em seus galhos cantar, fazer ninhos; estão sempre à espera de alguém que deseje ou necessite de uma sombra. Pacientes, dão a impressão de que têm ciência da sua tarefa na vida compartilhada da cidade.

Os acontecimentos vividos pelo Oiti da Rui Barbosa deixaram marcas no seu tronco, no desenho dos seus galhos. Seu alongamento rumo à luz do sol, com copa frondosa e esgalhada pela ação dos ventos, denota o esforço que teve para crescer, sua força, sua fertilidade, sua essencialidade estética.

Um oiti de oito décadas presenciou muitos acontecimentos ao seu redor. Terá ele abrigado cenas de amor? Terá se divertido com o palavreado enigmático de algum bêbado madrugador? Terá testemunhado situações de assalto? Terá se sentido impotente diante do corte, também recente, do outro oiti, seu companheiro de calçada? Terá produzido mais sementes ante a ameaça de descontinuidade da vida?

O oiti morto, na manhã do dia primeiro de fevereiro passado, era bonito, bem crescido e de aspecto alegre. Com mais de quinze metros de altura, já tinha passado bem da fase de crescimento físico, demonstrando bom aproveitamento do solo fértil de Fortaleza. O tronco apresentava um diâmetro razoável para plantas nordestinas. Nada disso, no entanto, evitou seu triste fim.

O que terá feito para ser visto como inimigo dos mandantes do crime e ser degolado publicamente? Terá sido acusado de estar velho, de ameaçar a segurança dos automóveis, de sujar a calçada com folhas, flores e cocô de passarinho? Não se sabe ao certo. O fato é que o Oiti da Rui Barbosa era um ser vivo que foi assassinado covarde e impiedosamente. Cortado em toras e com tronco quase rente à calçada, pôde-se ver que sua madeira era maciça, com tecido consistente, reveladores da história das suas fases de lenho.

As marcas da vitalidade do oiti morto surgiram na tonalidade escura, própria das células longevas e resistentes dos vegetais; no espessamento e na densidade da madeira, no brilho da medula intacta, dura, sem sinais de apodrecimento. Os traços dos períodos chuvosos, das épocas de seca, de fartura e escassez de nutrientes vividos por ele, estavam firmes, negando qualquer acusação de que ele não podia mais se sustentar.

Como todo organismo vivo, o Oiti da Rui Barbosa foi pequeno um dia, e quem passava pela rua certamente o via de cima para baixo. Depois, deixou as pessoas para trás na altura e só podia ser observado de baixo para cima, entre nuvens e céus, enquanto esverdeava a cidade. Devíamos nos lembrar das árvores do nosso bairro como nos lembramos dos amigos de infância, dos bons professores, dos personagens da nossa vida urbana.

Olhar para as árvores como um ser da nossa convivência aguça nosso senso de justiça e reforça a realidade anímica do nosso relacionamento com a natureza. Podar não é problema; a poda é como um cortar cabelos e unhas. As podas esfrangalhadas feitas pelas empresas que usam fiação em postes e o corte violento por interesses particulares específicos, em atos condicionados que banem o verde da cidade, é que deveriam virar tabu, algo rejeitado pela sociedade.

Crimes como o que baniu do nosso relacionamento o Oiti da Rui Barbosa deveriam ter penas severas. Quem mata uma árvore por matar está destruindo cruelmente tudo o que o verde significa para a vida urbana. Nossas árvores vivem em situações opressivas, inferiorizadas e segregadas por burrice e ganância que levam muita gente a vê-las como algo desprezível, simplesmente como coisa de outra espécie, de outro reino.

O valor socioambiental atribuído às árvores precisar tomar outros rumos. Precisamos de uma reviravolta na nossa consciência da natureza. Só assim saberemos reconhecer a virtude dos parques, das ruas arborizadas, dos bulevares, e seremos capazes de promover um efetivo planejamento urbano, ambiental e paisagístico.