A marca dos capitães donatários
Artigo publicado no Jornal O Povo, Opinião, página 7
Segunda-feira, 01 de Maio de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Nos livros de história, nas enciclopédias e nos compêndios escolares, encontramos que as capitanias hereditárias foram extintas em 1759. Eram amplas faixas de terra concedidas a nobres e fidalgos do reino de Dom João III, para serem exploradas de maneira particular, mas atendendo aos interesses dos empreendimentos da Coroa portuguesa. Os capitães donatários, como eram chamados os beneficiários dessa estrutura de repartição de poder, tinham isenções de impostos, exportavam indiscriminadamente o pau-brasil, negociavam com escravos e podiam aprisionar índios, expulsá-los de suas próprias terras, enfim, tinham carta branca para operar do jeito que a insensatez mandasse.
Como nunca paramos para refletir mais profundamente sobre tudo isso, parece mesmo coisa de história, algo aparentemente distante. Entretanto, os vestígios desse passado seguem regendo o cotidiano do Brasil dos 500 anos. A disputa pelo comando de glebas orçamentárias e pelo controle burocrático de suas operações, provocam prejuízos incalculáveis, muitas vezes em nome da busca de vantagens comparativas. A acanhada cooperação entre os órgãos competentes alimenta a cultura do desperdício, jogando pelo ralo nossos minguados recursos. Os novos capitães donatários fazem isso sem qualquer constrangimento.
Nos últimos anos, dentro de um mesmo guarda-chuva oficial e somente na tentativa de identificação de clusters (agrupamento de riquezas e atividades semelhantes integradas) nordestinos, produziram-se vários documentos dispendiosos, respaldados pela mesma intenção de promover o desenvolvimento integrado regional. Temos nessa linha programas do Ministério da Agricultura (1996), do Ministério do Meio Ambiente (1996), do Banco Mundial, através da Sudene e de secretarias de planejamento dos governos estaduais (1997), do Banco do Nordeste (1998) e os chamados Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento, do Ministério do Orçamento e Gestão, estudo feito pelo BNDES, com o objetivo de subsidiar a elaboração do Plano Plurianual do governo federal para a priorização dos investimentos públicos no período de 2000 a 2003.
Somem-se ainda as iniciativas de âmbito estadual, seminários, congressos, formação de comissões técnicas, contratação de consultorias internacionais e a relação aumenta por cissiparidade. Sem dúvida, trata-se de projetos e eventos importantes, tecnicamente bem elaborados por equipes de excelente nível, bonitos e com apresentações impecáveis. Apesar da sofisticação muitas vezes incomparável, essas produções acabam sendo a parte fácil da necessidade porque não mexem nos fundamentos determinantes das transformações econômico-sociais.
A conduta dos novos capitães donatários limita-se, como no tempo do império português, ao olhar vesgo econômico que, tem suas razões ao defender que as nossas condições climáticas e de solo rendem mais produzindo frutas tropicais. Mas rendem mais para quem? Como garantir que os dividendos da exportação retornarão em sacas de grãos que deixamos de produzir confiantes de que podemos comprá-las mais barato no mercado externo? Onde estão os projetos que defendem a segurança alimentar brasileira? Um país de famintos que só pensa em exportar alimentos está marcado para continuar eternamente colônia. Talvez a grande missão dos nossos governantes seja, lamentavelmente, manter atualizado o compromisso registrado pelo Códice quinhentista que desenhou o mapa das capitanias hereditárias.
*Artigo publicado com o título “Os capitães donatários”.