A resposta de Luiz Fidelis
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 27 de maio de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Poucas situações são tão incômodas para um artista quanto aquela em que ele se vê questionado sobre a sua organização do tempo de criador e, mais, a que põe em dúvida a sua própria condição de trabalhador. Isso é comum em uma sociedade onde o trabalho ainda está fortemente associado a relógio de ponto, metas e rotinas. Mas um dia desses (16/05), ouvi do compositor Luiz Fidelis uma resposta a essa questão, na perspectiva do artista.

Com seu talento de contador e cantador, ele falou de uma composição que fez, refletindo a amplitude da condição do artista e sua capacidade de atuar fora das molduras definidoras do que é trabalhar. Disse que a inspiração chegou no dia em que de tanto sua mulher vê-lo como se estivesse folgadão em casa, acusou-o de não fazer nada. Ao invés de ficar magoado, Fidelis partiu para uma composição, cuja letra expõe a dialética do que é ou não fazer alguma coisa: “Mas eu não faço nada não / É o que a minha mulher diz / Mas eu lhe faço feliz / Como é que eu não faço nada?”

E resolveu topar a controvérsia: “Para ela, trabalhar / É eu me levantar seis horas / Pra ela, trabalhar / É não ter hora para chegar”. Por ser autor de músicas com grande sucesso popular, o que lhe rendeu uma vida confortável, Fidelis descascou: “Tenho uma casa montada / Mais duas alugadas / Mas eu não faço nada / Tenho um sítio com piscina / Três meninos e uma menina / Mas eu não faço nada / Quatro cavalos de sela / Três carros para andar com ela / Mas eu não faço nada / Ainda vem me gritar / Dizendo ‘vá trabalhar’ / Que eu não faço nada”.

Centrado no que quer com relação à sua arte, ele decidiu viver em sua terra natal, a Juazeiro do Padre Cícero, embora isso o mantenha de certo modo afastado dos centros de difusão da indústria cultural. Assim, tudo o que acontece no dia a dia do seu mundo circundante vai emergindo em sua sensibilidade e ele vai transformando em música. Tem centenas delas, sempre muito criativas e caprichosamente simples. Mais de duzentas já foram gravadas por intérpretes como Elba Ramalho, Marinês, Abidoral Jamacaru, Bia Bedran, Dominguinhos e as bandas Mastruz com Leite e Dona Zefinha.

O amor pelo que faz e o desejo de tornar o cotidiano mais poético e mais divertido em seu frescor integral é tão importante nas composições de Luiz Fidelis quanto os temas por ele relatados com bom humor, mesmo nas circunstâncias em que o autor lida com referenciais da sociedade que negam a condição do artista, como o preconceito de desocupado reproduzido inclusive em casa por sua mulher, Darinéia.

Tive a oportunidade de conhecê-la e perguntar se aquela história tem fundamento. Ela me disse que sim. No primeiro momento pensei que o “sim” pronunciado por ela fosse apenas a confirmação da veracidade do fato, mas logo depois descobri que aquele “sim” referia-se à confirmação dela de que ele realmente “não faz nada”. O Fidelis estava ao nosso lado, ouvindo tudo com semblante tranquilo, e fiquei meio sem jeito, até me tocar da beleza do que estava acontecendo.

A sinceridade colocada a dois com clareza e espontaneidade tira a tensão desse tipo de problema por descontruir a ideia da verdade de cada um, respeitando as individualidades. Darinéa é bancária, regulada pela razão, e Fidelis é compositor, movido por abstrações. Embora com conceitos bem particulares, ambos partem de coordenadas diferentes para se encontrar no valor que dão ao que o outro é e faz.

Essa postura de compreensão dramática das virtudes entre a pessoa e a realidade define o caso, não pelo ato de acusação, mas por toda a conduta e história de vida dos dois. Em seu livro “Interacionismo simbólico e dramaturgia” (Ed. UFG, 2005), o sociólogo goiano Jordão Horta Nunes diz que diante desse estado de dissensão, o importante é “considerar como o sujeito vê uma situação, independentemente da concordância ou não do seu proferimento ou expressão com a realidade” (p. 44). Neste caso, o elemento de interpretação supera o rótulo de desviante imposto ao artista.

A resposta musical de Fidelis rompe com a ideia de justo e injusto, por sua congruência e autêntica aceitação de que há algo maior do que o entendimento deles a respeito do que é trabalhar. Entre juntar e desconjuntar, o que Darinéia e Fidelis fizeram foi saber lidar simbolicamente com uma projeção decorrente da pressão social predominante que inferniza os casais exaltando contribuições consideradas desiguais no plano doméstico.

Ao tomar para a sua canção o significado extensional da situação e não o sentido intencional da crítica da sua mulher, o compositor vale-se do clima de forró para dar ao problema uma conotação de “da boca pra fora”. Quando diz espirituosamente que faz a mulher feliz, mas não faz nada, ele abre o coração para reclassificar a experiência e suavizar o conflito, sem impingir a ela um sentimento de culpa por ter dito aquilo. Deste modo, Fidelis, contando com a cumplicidade de Darinéia, dilui a distinção entre o que poderia ser fato e prova para transformar o indesejado em ajustamento amoroso da relação.