A desconstrução do cinismo
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Quarta-feira, 19 de Maio de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Há momentos em que fica difícil de estabelecer uma diferença entre ser bobo e ser honesto. O fascínio pela corrupção parece alastrar-se por toda parte na busca descomedida por novos comparsas. Ser decente passou a ser ameaçador, ao mesmo tempo em que a sensação de cooperação oferecida no campo da desonestidade gera o pânico da punição fatal. Some-se a esse conflito a pirotecnia da “democrática” indústria do escândalo e teremos a impressão de que chegamos ao fim, antes mesmo de termos começado a entender o que estamos fazendo nessa fértil imensidão territorial, num complexo étnico falando a mesma língua.
Os sobressaltos provocados pela arrumação geodinâmica dos fatores histórico-culturais da formação do Brasil transformam acontecimentos inesperados em incompreensões da necessidade da desordem para a geração do novo. E isso leva tempo, embora possa ser acelerado, conforme o grau de maturidade conquistado. Somos uma nação adolescendo em nossa angústia com o inevitável. Para chegarmos realmente à consciência deste paradoxo, como ponto de partida para a auto-respeitabilidade, precisamos de muito esforço e determinação. Do contrário, seguiremos os preceitos subservientes e vegetativos reservados aos povos colonizados.
O clima não é lá muito propício para se pensar assim. O estrago que a elite brasileira está provocando, ao promover a vulnerabilidade econômica externa e a ampliação da apartação social no País, é desmedido e aparentemente irrecuperável. A supervalorização do lixo cultural para o entretenimento alimenta a ignorância e fomenta a cidadania de segunda classe. Depois de passar pelo sufoco de perder espaços consideráveis para as condições de expressão dos seus valores mais legítimos, a população, vítima da idiossincrasia que rege as concessões públicas, acabou nas mãos de uma televisão aberta do mais baixo nível, como última opção de lazer.
Por enquanto, no processo de catarse cultural, a maioria está diante de uma tevê que banaliza a vida e a relação entre as pessoas que, por sua vez, reagem de forma ligeiramente semelhante ao comportamento eufórico dos romanos nas arenas de jogos gladiatórios. A exposição de intimidades pessoais, familiares e comunitárias, propagada pela lente grotesca dos funestos programas de auditório inspirados no espetáculo da amargura, tem um quê do frenesi antes causado pela troca de golpes impiedosos dos gladiadores. O sacrifício público e cruel da dignidade humana, com transmissão ao vivo, exorciza temporariamente a dor das feridas individuais cotidianas. Pensar que ter alguém em situação pior pode ser traduzido como um conforto, não deixa de ser um reflexo sórdido da minoria prestigiada e dominante.
Acontece que esse barbarismo inconseqüente tem um inestimável e abrasivo efeito multiplicador na desconstrução do cinismo condutor dos discutíveis rumos dados ao desenvolvimento brasileiro. Quando o oco do desconhecimento e o limite avesso da paciência entrarem em choque popular, poucos discursos serão entendidos e confiáveis. Sobrarão aqueles identificados com o nosso sentido de destino, através de atitudes fundadoras de um padrão ético nacional. É certo que, de tanto ser usada em vão, a palavra ética está desgastada. Todo mundo fala em ética, como um termo de sentido absoluto, colocado acima dos interesses de quem o pronuncia.
A frágil compreensão da riqueza da nossa identidade mestiça tem dificultado o foco regulador do que desejamos ser. Essa ausência de rumos beneficia os agiotas sociais de plantão, fermentando a corrupção e a desfaçatez. A solução está na definição das regras do jogo, acabando com essa imoralidade cultural que nos incita a querer ter o que não precisamos e a querer ser o que não somos. Em um exagero caricatural pode-se dizer que o Brasil não está totalmente falido porque a lógica dos peritos do FMI não consegue acertar o pé de apoio das sacoleiras. Como se dará a purificação para desnublar o horizonte é uma resposta para a qual resta ainda uma interminável fila de interrogações.