NECESSIDADE DO BELO – Arte e expressão da natureza
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 159 (Editora Riso), pág. 20
Edição de junho de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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No dia do lançamento do clipe da música “Dança de Negros – Batuque” [veja vídeo aqui], que fizemos na livraria Cultura, em Fortaleza (08/05/2015), falei que me sentia feliz por ter Alberto Nepomuceno (1864 – 1920) como meu contemporâneo. Ao fazermos uma letra para essa composição do maestro cearense que inventou a música brasileira, a cantora africana Fanta Konatê, o músico e produtor paulistano André Magalhães e eu, passamos a ter como parceiro um jovem de 23 anos, idade que Nepomuceno tinha quando promoveu o diálogo entre a música de tambores e a música de câmara. 

No âmbito da historiografia musical brasileira nada disso tem muito valor. Nossos cronistas da música seguem a linearidade da linha do tempo, das cronologias oficiais e praticamente se restringem ao território de domínio da indústria cultural. Tratam à exaustão dos fatos que consideram notáveis em seus raciocínios e paradigmas e, assim, constroem verdades que se absolutizam. Como se já não fosse o bastante, em muitos lugares a música sofre ainda com o patrulhamento de uma ideologia geracional redutora de oportunidades culturais. 

O que chamo de ideologia geracional é o recorte do tempo como instrumento de luta por afirmação dos que se deram bem em um determinado período e, para permanecerem isolados dos outros, procuram destruir crenças no que não é espelho, vulnerabilizando as perspectivas macrotemporais da dinâmica artística. Essa opressão da lembrança constante em favor dos mesmos nomes e repertórios levam ao desfalecimento das referências basilares do meio musical, como se as apagassem das variáveis da nossa cultura. 

O pensador italiano Paolo Rossi (1923 – 2012) chamava de “tempo profundo” as possibilidades de impactos produzidos por novas descobertas do passado. Em seu livro “O passado, a memória, o esquecimento” (Editora Unesp, 2010), ele diz que “ressurgir de um passado que foi apagado é muito mais difícil que lembrar de coisas esquecidas” (p.35). E, para toda a riqueza musical brasileira, “os avanços da historiografia fazem continuamente retroceder o passado imaginário que foi construído pela memória coletiva” (p. 28), como uma antinomia entre história e memória. 

Ao escrever o livro-cd “Invocado – um jeito brasileiro de ser musical” (Armazém da Cultura), do qual faz parte a versão literomusical de “Dança de Negros – Batuque”, priorizei a liberdade das lembranças e a diversão do pensamento para, somente depois, encontrar nos conectivos por eles criados, o lugar da pesquisa e do método. Quando digo que Alberto Nepomuceno é meu contemporâneo, mesmo tendo vivido nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, é porque estamos vinculados por nodos de sentimentos, emoções, idealismos, conceitos e atitudes. 

Contemporâneo é quem me toca e não necessariamente quem partilha comigo uma época comum, vivendo em “tempo raso”, numa inversão do conceito de Paolo Rossi. Fico emocionado quando vejo a Fanta Konatê dançar. Ela evoca em seus gestos algo além do que simplesmente existe, algo do ser profundo, na mais primitiva condição humana de se soltar no tempo sem espaço onde se expressa o sagrado da arte. No clipe de “Dança de Negros – Batuque” sua alegria na roda de tambores e cordas, em plena plantação de mandioca e cajueiro, é pura, contagiante e reveladora do que pode o tônus da nossa musculatura civilizatória, quando nos maravilhamos como meio de expressão da natureza.