Era uma vez Passo Fundo
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 10 de junho de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Num país onde a valorização das ideias e dos ideais encontra-se em franco declínio, onde ler não é considerado uma ação educativa e estudar, mesmo ainda sendo um sonho predominante das famílias, tem perdido espaço aspiracional para a esperteza, não é de surpreender a notícia do cancelamento, por falta de apoio, da 16ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, o maior e mais importante evento de formação de leitores do Brasil.

Não é de surpreender, mas tudo isso é de indignar, quando vemos em paralelo um novo boom de autoajuda tomando o lugar do livro no mercado editorial. Falo dos cadernos de colorir para adultos, do tipo “Mãe, te amo com todas as cores” (Christina Rose, Ed. BestSeller/Record, 2015), que estão sendo passados por livros e, assim, acabarão perturbando as estatísticas de leitura, maquiando a nossa vulnerabilidade cultural e educacional.

A Jornada Nacional Literária de Passo Fundo, idealizada e coordenada pela professora Tânia Rösing por mais de três décadas, não é um evento estruturado a partir dos interesses da indústria cultural, mas da visão de uma universidade e de um município que acreditam na leitura como uma chave essencial para o desenvolvimento. E fazem isso tratando o livro dentro do paradigma retórico do filósofo espanhol Francisco Abad Nebot, quando este diz que “o prazer estético precisa ser um prazer inteligente” (El Signo Literario, p.251, Madrid: EDAF, 1977).

Participei da 13ª Jornada (2009), como autor convidado da Universidade de Passo Fundo, e fiquei impressionado com o espírito acolhedor da cidade, o porte do evento e a eficácia do trabalho em prol do amor ao livro e à leitura. Depois de selecionado por especialistas, meu livro-cd Flor de Maravilha (Cortez Editora, 2004) foi adotado por centenas de escolas em dezenas de municípios do norte gaúcho e sul paranaense. Quando cheguei às seis lonas espalhadas no campus da universidade, estavam lá milhares de crianças que haviam passado meses se relacionando com minhas histórias e músicas.

É inaceitável abrir mão de algo tão valioso. Uma experiência desse nível e valor deveria estar sendo multiplicada em outras regiões do País. Depois que as pessoas que estavam na parte inferior da pirâmide social ascenderam ao consumo, tornou-se mais fundamental ainda pensar a literatura em termos estruturais, por sua natureza plurissignificativa, pelo poder sugestivo que oferece às palavras e por permitir ao leitor interagir com o texto a seu modo e dentro das suas pressuposições histórico-culturais.

Na última aula que ministrou no Collège de France, o pensador francês Roland Barthes (1915 – 1980) apregoou que “a ameaça de definhamento ou de extinção que pode pesar sobre a literatura soa como um extermínio de espécie, uma forma de genocídio espiritual” (A Preparação do Romance II, p.15, São Paulo: Martins Fontes, 2005). Infelizmente estamos passando por isso no Brasil. E um país sem literatura, sem uma experiência contundente de ampliação da função denotativa da palavra para o âmbito da conotação, dificilmente consegue estabelecer as bases do seu sentido de destino.