Vaqueiros e rezas de sol
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 05 de agosto de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Tinha terminado a missa e eu já saia das proximidades do altar-palco, quando vi um vaqueiro descer do cavalo e tirar do alforje um queijo e uma rapadura. Acocorou-se e começou a cortar fatias do queijo e a quebrar pedaços da rapadura para quem quisesse comer. Deleitei-me com o sabor de fé dos produtos da sua partilha, entre pata de cavalo, poeira e um sol escaldante.

O vento quente e o canto da terra abençoavam o ato daquele vaqueiro como na parábola do Segundo Livro dos Reis, em que um homem da povoação de Baal-Salisa distribui seu pouco pão para saciar a fome dos seguidores do profeta Eliseu, na cena bíblica lida durante a 45ª Missa do Vaqueiro, realizada no dia 26/08, no Parque João Câncio, no sítio das Lajes, em Serrita (PE).

Essa manifestação de poesia, lenda e devoção, que invoca um Jesus sertanejo a brotar dos riachos secos, nasceu após o padre João Câncio, de Petrolina (PE), ouvir o Gonzagão, de Exu (PE), cantando A Morte do Vaqueiro (Nelson Barbalho / Luiz Gonzaga), em homenagem a Raimundo Jacó, exímio profissional assassinado por um boiadeiro invejoso.

O evento ampliou sua força de atração estética com a decisão de Janduhy Finizola, médico de Jardim do Seridó (RN), de compor uma missa completa, gravada no ano de 1976 em LP do Quinteto Violado, de Recife (PE), obra de esplendoroso valor, refeita em CD de 1991, pelo mesmo grupo, com a inclusão do poema Vaqueiro, Meu Irmão Vaqueiro, do sacerdote Dom Hélder Câmara, de Fortaleza (CE).

A Missa do Vaqueiro, interpretada pelo Quinteto Violado, conta ainda com a Toada de Gado (Vavá Machado / Arlindo Marcolino) e A Morte do Vaqueiro (Nelson Barbalho / Luiz Gonzaga). Ao longo dos anos foi incorporando em sua liturgia outros cantos telúricos da vaqueirama. Sempre no sentido de que Raimundo Jacó não morrerá enquanto estiver presente no coração dos outros vaqueiros em oração, cantiga e fraternidade.

Cada parte da missa é uma filosofia popular debulhada em seu rosário poético. Na oferenda, enquanto os vaqueiros sobem ao palco montados em seus cavalos e bois, a banda toca “Eu te ofereço o meu gibão / Chapéu de couro e oração / Nossa união e decisão / Nossa melhor disposição / Minha surrada montaria…”. Aboiando, eles vão entregando aos celebrantes peças da indumentária que utilizam no pastoreio do gado.

O show no altar desta 45ª celebração da Missa do Vaqueiro ficou a cargo dos cantores Josildo Sá, de Floresta (PE) e Flávio Leandro, de Bodocó (PE), do poeta Pedro Bandeira, da Juazeiro do Padre Cícero (CE) e do Coral Aboios, de Serrita (PE). Em momentos emocionantes, como na Comunhão: “Aqui no fundo da caatinga tem / Missa e Oração / Vaqueiro, Deus e o sertão estão / Em tempo de comunhão”, os vaqueiros tiram chapéus, tocam chocalhos e berrantes.

A antológica peça de Janduhy Finizola mexe com vaqueiros, celebrantes e com a maioria dos presentes. Tanto que, mesmo com a estrutura de apoio bem descuidada, tinha lá cerca de trinta mil pessoas em situação de Credo: “Creio em Deus Pai (…) Creio na minha gente / Na terra e na semente / No amor que a gente sente / No amor que a gente dá”. Muito bonito!