A chave de Auerbach
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 12 de agosto de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Acabo de ler um livro que diz tudo sem a mediação de frases e mostra muito sem revelar tudo. Nele, a construção de sentido se dá entre o movimento e a espacialidade por meio de ações que nascem entre o código da escrita e o da ilustração, transcendendo, assim, os limites da palavra e da imagem. É um livro de poesia para criança, mas que faz bem a qualquer adulto.
Em sua oferta de representações para a articulação do jogo da leitura com a dinâmica dos pensamentos, Coisa de Gente Grande, de Patrícia Auerbach (Cosac Naify, 2015), deita e rola. Se a autora coloca a palavra “Lugares” ao lado de crianças brincando de se esconder em uma caixa, ela sugere um encontro de olhares e de pensares, deixando ao leitor o estabelecimento dessa conexão de acordo com sua compreensão da palavra “lugar” e de como pratica esse significado em suas brincadeiras.
Patrícia Auerbach desenha umas pontas de pés sobre livros que, por sua vez, foram postos por alguém em cima de uma cadeira, para, na página seguinte, escrever “Plano”. A grande leitura desse capítulo se dá pela denotação do que não pode ser visto nem lido nas páginas do seu livro; só há um lugar que o leitor pode saber do que se trata a cena, que é dentro de si, da sua própria experiência.
O sugestivo título Coisa de Gente Grande já anuncia algo que está disponível por aproximação gestáltica. Emparelhado ao termo “História”, vê-se a imagem de um banco em que estão sentados um adulto e uma criança. Seus corpos aparecem somente da cintura para baixo, mas entre as pernas de cada um existe um símbolo – na do adulto, uma bengala, na da criança, uma bola – num diálogo dos traços comuns das diferenças.
É uma obra que tem aspectos da potência do imaginar, do pensar e do apropriar-se, que Paulo Freire (1921 – 1997) conceituou de “palavra geradora”. O que estou chamando de “chave” nesse trabalho é o senso aspiracional da “coisa de gente grande” que a autora lança mão para oferecer de modo tão sofisticadamente simples.
Nas páginas em que há a ilustração de um bolo com velinhas e balões de aniversário, ela coloca a palavra “Canções”. Impossível não pensar musicalmente ao observar esse capítulo; ele traz em sua força telepática as cantigas das nossas festas e, sem dúvida, um som interno com “parabéns pra você”.
As imagens e os vocábulos escolhidos por Patrícia provocam uma busca interior pela poética da lembrança, da interação e da linguagem do brincar. Com o seu “Coisa de Gente Grande”, a criança tem oportunidade de contemplar, especular e fantasiar ao sabor dos seus pensamentos. No capítulo “Conquistas”, o abraço da menina com o seu cão tem calor táctil e afeto em uma mensagem gestual de consciência do aconchego.
No último capítulo, a menina diante da penteadeira está acompanhada pela palavra “Infância”. Ela tem apenas meio rosto espelhado. A resposta ao que vai acontecer está fora do papel. É desse jeito que a chave de Auerbach fornece meios para autonarrativas. Logo na capa, um sinal: a criança na bicicleta com as rodinhas de apoio retiradas, enquanto as ferramentas de desparafusar estão lá na última capa. Partiu!