Ferreiros de Potengi
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 26 de agosto de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Das muitas maneiras de ouvir o mundo, a audição das paisagens sonoras dos lugares é uma das que mais me atraem. Criado no interior e acostumado a acompanhar a modelagem de ferros para atividades agropastoris em oficinas isoladas, para mim foi muito impactante conhecer a comunidade de ferreiros de Potengi, no sul do Ceará, a cerca de 500 quilômetros de Fortaleza.
Como se escutasse uma orquestra de ferros, com músicos espalhados em dezenas de oficinas, saí construindo interpretações imaginárias e simbólicas entre a realidade concreta e sensações representativas cheias de sentimentos e emoções antropológicas. A cada soar e ressoar das duplas de bate ferro, no ritmo entre o martelo e a marreta, fui ouvindo a canção do ciclo do gado, do algodão, da vida no sertão.
Pensamento, memória e linguagem, tudo formava um campo de audição daquele espetáculo onde estão plantados os sons metálicos reconhecidos e reconstituídos pelos meus receptores culturais. Sensação física e mental pura, captada por impressões racionais e inconscientes sob o estímulo interrogativo da técnica de dar forma ao ferro como expressão cultural intrínseca.
É muito diferente escutar um ferreiro e uma comunidade de ferreiros, com dezenas deles trabalhando simultaneamente. Comparo essa beleza à do canto dos grilos na roça e à do coaxar dos sapos na lagoa. O ferro em brasa, amolecido pelo fogo, é malhado sobre uma bigorna para virar foice, machado, facão, alavanca, enxada, roçadeira, chibanca. O som do resfriamento no balde de óleo tempera o metal libertando-o da vermelhidão do fogo para prendê-lo à função de instrumento de trabalho.
A ecologia acústica de Potengi está dentro da noção de paisagem sonora desenvolvida pelo compositor canadense Raymond Murray Schafer em seus estudos sobre atividades sônicas dos vulcões, da água, do clima e das sonoridades culturais presentes ao longo da história da humanidade. A sequência do bater funciona como uma rima em ritmo de marteladas, produzindo a clariaudiência da sinfonia dos metais, com sua pulsação reverberante e contínua de coração da cidade.
Potengi tem uma marca sonora, uma identificação acústica. Os sons produzidos por seus ferreiros funcionam como delineadores do caráter histórico-cultural daquele município. Como lugar de referência na manufatura de instrumentos de ferro para atividades agropastoris nordestinas, Potengi está para o Ceará como Toledo, conhecida pela produção de espadas e armaduras para as legiões romanas, está para a Espanha.
Os ferreiros de Potengi constituem um marco sonoro inscrito na vida daquela comunidade. É o que R. Murray Schafer conceitua de comunidade acústica, em associação relevante com as definições de entidade política, geográfica, religiosa ou social. “Uma paróquia era também acústica e se definia pelo alcance do som dos sinos da igreja” (A Afinação do Mundo, p. 301, São Paulo: Editora Unesp, 2001).
Incrível essa experiência sensorial, sensitiva e mnemônica. A gente sai de Potengi impactado pelo som das oficinas e pelas imagens daqueles mestres se comunicando apenas pela linguagem dos gestos, pelo movimento do corpo.