Tom Zé e o bug da juventude
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Terça-feira, 22 de Junho de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Está mais do que claro que o nosso ritmo de empobrecimento cultural não combina com o instrumental tecnológico posto à disposição de boa parte da humanidade. O desencontro entre a possibilidade de acesso instantâneo a informações de qualquer lugar do planeta e o vácuo intelectual provocado pelo não saber o que procurar, nem para quê, vêm travando horizontes e sedimentando apatias. A sensação de onipresença solitária dá um ar de ousadia, dinâmica e determinação em muitos jovens. Todavia, esse auto-service do individualismo on-line está mais asséptico do que nunca. Tem código de barras, mas está chocho e fora de garantia.
Para quem vive em um País castrado de visão de futuro, sem cumplicidade dos pais, sem escola responsável e sem a percepção do valor da diferença e da capacidade de convergir pelo interesse comum, é difícil apostar em esperança. A juventude quer alguma coisa menos previsível e menos interesseira dos pais, da escola e da sociedade. Sem calor familiar e comunitário, sem segurança para arriscar, o jeito é extravasar inquietação nas violentas opções dos videogames, onde morrer só é chato porque o jogador precisa começar tudo de novo. São estímulos ofensivos que ganham ar algo convencional e o tédio retorna como um bumerangue de clipe tribal.
Na busca de remédio, uns caem no conto das drogas pesadas, outros no conto das fórmulas de sucesso e há os que vão para onde sopra o vento e, normalmente, apagam a luz batendo no primeiro poste. Felizmente, existem os que querem mais e, mesmo postos na moenda, negam soltar todo o mel. Sabem que vai faltar para alguma abelhinha perdida. E o maior exemplo vivo dessa força da juventude tem hoje 63 anos e foi registrado na cidadezinha de Irará, interior da Bahia, com o nome de Antônio José Santana Martins. Eternamente original, Tom Zé passou quase trinta anos enterrado vivo no cemitério da cena musical brasileira.
Por sincronicidade dos tempos, ressurge nos anos 90 para contribuir com o País, reacendendo no coração de muitos jovens o apreço pelo direito de experimentar, de atrever-se e de pintar e bordar com os valores modernosos que maquiam a vida e inviabilizam a evolução saudável das pessoas. Assim como os computadores, a juventude no mundo vive o drama do seu bug na virada do milênio. Tem “nêgo” travando pra tudo que é lado. Performático, recreativo, naïf, irônico, musical e transbordante em verbos imagéticos, Tom Zé espelha a luz contida no mais fundo ardor dos corações juvenis.
Desde o lançamento do disco The Hips of Tradition (As ancas da tradição), em 1993, passou a enfrentar uma maratona de shows e entrevistas, principalmente no exterior. Mais recentemente, em 1998, lançou, pelo mesmo selo nova-iorquino de David Byrne, o cedê “Fabrication Defect” (Com Defeito de Fabricação), no qual pinça alguns aspectos da nossa sina colonial. Ele jura que não somos burros, mas admite, com refinado sarcasmo, que todos aqueles que conseguem escapar de ser mão-de-obra barata global e passam a produzir cultura apresentam defeitos de fabricação.
Tom Zé, com seu jeitão Darcy Ribeiro de encarar a nossa condição mestiça, espirituosa e travessa, vai direto no que chama de “fonte da nação”. Luz, cor, gente simples, inventiva, solícita e calorosa. Sua música desorganiza a mesmice, peita a banalidade estabelecida e não tem medo de desagradar a ouvidos debilitados pela simples falta de acesso a tantas opções que o Brasil produz cotidianamente. Afoito, como todo bom nordestino, ele jamais concedeu mordaças à sua liberdade interior de criar o que a freqüência do “visgo do som” intuísse. Foi marginalizado por isso, mas acabou contrariando até a uma velha lei da termodinâmica, segundo a qual a luz tornada calor não mais retorna em forma de luz. Mais do que um brilho, Tom Zé ressuscitou estrela, cheirando a combustível de juventude, na sua aventura estética.
A recente turnê que fez pelos Estados Unidos foi considerada, literalmente, pelo jornal The New York Times, como “um dos maiores acontecimentos musicais da década”. Poucos antes, havia sido ovacionado na última edição do festival Abril Pro-Rock, em Recife. Tom Zé não é só música, é expressão corporal e um conjunto de atitudes de quem não abre mão de estar sempre sofrendo de juventude. Isso ilumina jovens brasileiros, norte-americanos e europeus. Dá a impressão de que todos esses jovens não estão sozinhos em sua insurgência contida, em sua juventude maquiada por um sistema de valores conservadores e crueis.
Para quem, em plena ditadura militar, teve a ousadia e habilidade de dar um troco à censura, fazendo um elepê com a foto de um ânus ampliada na capa, rasgar dólar no programa do Jô Soares é fichinha. Acho que a gente precisava ver alguém rasgando dólar publicamente. Estava faltando esse ato simbólico à nossa auto-estima. Quantas pessoas, naquele momento, não respiraram fundo e pensaram alto: “não, nós não queremos a sua moeda, não queremos ser vocês”. A arte de Tom Zé é anti-hipocrisia, por isso é perigosa em um mundo assentado nas vigas da aparência. Iconoclasta, sua palavra revolve mitos e focaliza novos significados, como um azimute na charada da língua.
É próprio da juventude negar imposturas. Mesmo quando não conseguem comparar valores por falta de oportunidade, os jovens podem até seguir os caminhos tradicionais para os quais são tangidos. Mas, no primeiro sinal de nova trilha, os que sobrevivem fogem sem pestanejar. O que pode passar na cabeça de um adolescente que, com ar de endeusamento, vive decorando na escola os nomes dos ganhadores do prêmio Nobel e escuta o Tom Zé dizer que esse sr. Alfred Nobel, ficou podre de rico com a invenção da dinamite e da gelatina explosiva, daí criou um prêmio, com o próprio nome, destinado aos que promovem benefícios à espécie humana? São expressões que amolecem o gesso da rotina.
Quando estava na difícil situação de ostracismo (e foram muitos anos assim), Tom Zé chegou a ganhar, na justiça, uma questão de Direitos Autorais com uma revista que plublicara seus versos sem autorização. Essa história é trágica, mas ele conta com muita graça. Diz que, cheio da grana, chegou a ser tentado até por lojas de automóveis de luxo, mas acabou seguindo o conselho dos entendidos e aplicando na Bolsa de Valores. Perdeu tudo. Acha bem feito, pois chegou à conclusão de que seria um rico medíocre. Alma irreverente, juvenil, pesquisando sonoridades, jorrando ironias e, mais que tudo, dando sinais de que a juventude pode até estar com seus princípios desmantelados, mas tem um olho guardado para ver o que interessa. E questão de oportunidade se discute.