As lições de Mariá
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 02 de setembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Em tempos de escassez de água e de amor, as relações vão ficando tensas e inclinadas a comprometer os dons da alegria e do prazer. Numa situação dessas, o que faz um artista invocado como o Messias Holanda? Ora, ora, inventa saídas poéticas para os cuidados com a água, para a conquista amorosa e para a diversão! Faz arte pura, mel melódico de rapadura com xote sensual, social e filosófico.
Quem já ouviu a sua composição Mariá sabe do que estou falando. A cada vez que toca, essa música renova as possibilidades de abordagem de um tema tão complexo e atual. Tirada da grandeza da vida simples, é uma obra de muito interesse da educação inspirada na cultura. Ouvir, dançar e aprender com Mariá é permitir que a genialidade criadora de Messias Holanda atue em nós com sua leveza processual intuitiva.
Mariá tem a visualidade da contação oral. É uma música encenada no teatro da mente fabuladora do seu autor. Enquanto clareia uma intenção, insinua outra, em seu hedonismo, sua excitação e sua dualidade sedutora, motivados, por um lado, pelas imposições da necessidade, e, por outro, pela malícia desejosa: “Pra onde vai com essa trouxona danada, Mariá / Na cacimba só tem água pra beber / Pouca água deixa a roupa mal lavada, Mariá / Lavar roupa também tem o que aprender”.
Em sua aula de sobrevivências, Mariá alerta para os riscos da privação e, em sua vocação libidinosa, convida para a abundância das carícias. Existe nessa música um paralelo poético entre o tratamento que o autor dá ao senso de responsabilidade de interesse da coletividade e à sua vontade pessoal de ter pelo menos a colcha da cama limpa para a realização de sua fantasia: “Bota pouco pano nessa trouxa, Mariá / Nesse tempo não tem água pra gastar / Leve a colcha, eu preciso dessa colcha / Abra a trouxa, bote a colcha / Leve a colcha pra lavar”.
Esse espirituoso duplo sentido faz com que os sentimentos e os referentes fonéticos que estão por trás dos argumentos se tornem parte da potência rítmica cativante dessa obra. Em Mariá, o galanteio é enriquecido pela referência ao estado da natureza em um contexto de sequidão, como apelo irrecusável de um coração sedento. Há nesse jogo semântico um compartilhamento intersubjetivo em trânsito pelas veredas da sede de beber e de amar.
Messias Holanda, nascido há 73 anos em Missão Velha, interior do Ceará, autentica sua composição, pondo na letra de Mariá uma inquestionável marca d’água da sua geografia: “Já disse, na cacimba não dá certo / Vá pro riacho salgado, eu fiz um buraco lá / A água do riacho é bem limpinha / Tu lava a trouxa todinha se o sabão não cortar”. Isso é que é lábia, isso é que é forró, isso é que é música invocada!
Pensei tudo isso depois que Messias Holanda escolheu Mariá para sua interpretação solo na homenagem que a Banda Dona Zefinha e eu faremos a ele no lançamento-show do livro-CD Invocado (Armazém da Cultura), dia 4/10, no Dragão do Mar, em Fortaleza. Mesmo já conhecendo essa música há tantos anos, nunca tinha atentado para a profundidade sutil da sua letra, capaz de revelar o quanto “Lavar roupa também tem o que aprender”.