Crise de poder ou de controle?
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 23 de setembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
O estado de caos vivido atualmente no Brasil é um fenômeno de estrutura de poder, e não de reflexo cultural. A crise política instalada no país é de tentativa de controle de uma sociedade que avançou em suas aspirações e seus representantes políticos insistem em empurrá-la para trás com a encenação de uma polarização partidária imprudente, desqualificada e perigosamente voltada ao acirramento das divisões sociais.
A reciclagem perseverante de estereótipos de conduta reforça as ideias-força de esperteza, corrupção, fraude, nepotismo, compadrio, autoritarismo, centralismo e o vale-tudo pelo controle do poder como atributos culturais. Essa mania perversa de tratar comportamento como cultura danifica nossas reservas de consciência coletiva ante o fortalecimento da extravagância, da desfaçatez, do efêmero e do artificialismo.
A cultura não é responsável pelo comportamento de indivíduos e grupos sociais, embora a naturalização e o prolongamento de determinadas condutas acabem por influir e modificar traços culturais. Essa ameaça reducionista é um dos riscos impostos pelo chafurdo feito na democracia pelos partidos azul e vermelho em luta pelo controle do poder no Brasil.
A relação condicionante-condicionado estabelecida nos processos de conflito, distribuição de poder e validação ou negação de posições de autoridades constituídas fere a subjetividade social no que ela pode descobrir de pessoas reais por trás dos agentes políticos abstratos. O modelo de representação, inspirado na metáfora teatral dos atores sociais, perde significado diante das casas de entretenimento de massa que se tornaram os partidos.
O poder em um país fantasticamente miscigenado como o nosso está nos seus múltiplos domínios sociais, na diversidade regional e nas mais inusitadas manifestações socioeconômicas geradoras inclusive de renda informal, como, no dizer do antropólogo mexicano Roberto Varela (1934 – 2005), “forças equilibradoras que causam desequilíbrio” (Cultura y poder, p.116, México: Anthropos, 2005). Enquanto isso, destituídos de papéis-modelo decentes, oscilamos psicossocialmente na vertigem da falta de infraestrutura simbólica.
Em seus estudos de antropologia social, Varela procurou separar didaticamente cultura, como sistema de significação, do contexto que lhe dá sentido. “Se a cultura é um conjunto de signos e símbolos, o comportamento é uma ação” (p.87). Ao estabelecer essa diferença entre cultura e padrão de comportamento, o pensador mexicano coloca os objetivos públicos nas mãos dos que vivem, experimentam, sentem e compartilham uma cultura.
Não é à toa que, na luta pelo controle do poder, muitos políticos valem-se do sistema educacional como “mecanismo legitimador do fracasso” (p.162), frente às grandes promessas de ascensão social incutidas pelas ilusões dos mercados de atletas de futebol, de gamers, de traficantes de drogas, de mascates da fé e de agenciadores de programas de auditório, onde as exceções são insistentemente vendidas como regras. No fundo, “o poder se baseia no controle” (p.129), mas “o controle não é o poder” (p.144). Eis o nó da questão.