Poesia pública e parede-arte
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 07 de outubro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

FAC-SÍMILE

op_poesiapublicaeparedearte

Os muros parecem relaxar de sua dureza quando se tornam espaços abertos e radicalmente democráticos da sintonia da poesia com o grafite. Nessa perspectiva, quebrar a objetividade dos corredores urbanos pela sugestão de movimentos insuspeitáveis de significados é um dos impactos produzidos pelo livro de rua “Uma cartografia poética da Cidade Iracema”, do poeta Sivirino de Caju e do artista plástico Éden Loro, que está lançado pelas paredes dos bairros de Fortaleza.

Exposto à chuva, ao sol, aos ventos, ao pó de asfalto e às balas perdidas, o livro de rua transmite crença no sentimento poético e no infinito ressoante e ressonante da palavra, em que pese o rigor empedernido dos tijolos na missão protetora dos muros. Conectadas por impulsos da ardência criativa, as páginas da obra celebram em bases de rebocos efêmeros o espelho da boa fortuna clandestina dos artistas.

Cada poema e cada imagem grafitada funcionam como ponto de passagem do plano individual para o coletivo e do coletivo para o individual, numa troca de enunciados, revelações e cruzamentos de limites entre sujeitos. “Encontre-se / com outras / formas de poder / ser”, dizem uns versos soltos pelo bairro do Canindezinho, ampliando a ambiência humanizadora da cidade, suscitando a fuga do encurralamento do cotidiano pelos recantos das plasticidades semânticas.

As primeiras páginas estão na Barra do Ceará e as últimas no Monte Castelo, em um folhear vinculador das paredes ao ato criador da poesia demolidora da indiferença e de ambos com a cidade. O livro de rua está fixado nos muros, em pontes, paralelepípedos, pedras de riachos, praças e quebra-mares, mas não está subordinado a eles.

Os autores parecem querer fazer dos passantes testemunhos dos seus líricos percursos, na tonalidade dos seus sentimentos e na voz interior de um livro cujas páginas, para serem passadas, exigem que o leitor passe de rua, passe de bairro, levando consigo a função interpretativa por diversos endereços visuais, sprays em moldes na elasticidade do verbo, nascendo do espanto e do encanto, feito lagarta no virar da borboleta em voo de busca da completude.

A poesia pública largada pelos muros se apresenta como explicitação da condição sensível existencial, pronta a instigar a agudeza de espírito pelo que propõe de desafio à vontade sequencial de ler a página seguinte. Só lê o livro de rua de Sivirino e Éden quem estiver disposto a ler a cidade por trás das barreiras físicas, culturais e psicossociais. A mensagem é simples e aparece em afirmações poéticas do tipo “Ir por onde flor”, já viralizada por diversas vias e infovias.

Sob o lema “Juntando as forças sem acumular poder”, esse curioso livro de rua, viabilizado pelo edital Leonilson de Artes Visuais, da Prefeitura de Fortaleza, conta com a participação de vários outros poetas e artistas do grafite, como Reginaldo Figueiredo, que escreveu essa pérola: “Quando todos / Nós / Entendermos / Que de nada / Somos donos / Teremos tudo”. Na Lagoa da Parangaba, a síntese: “Viver de garça”, com a qual Sivirino de Caju aclama a poética das aves.