Gol contra o futsal
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Quarta-feira, 28 de Julho de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Parece um problema simples de resolver, mas quando, em uma estratégia de desenvolvimento, há confusão no conceito de cultura, a sociedade tende a desandar e a perder suas reais vantagens competitivas. A melhor fórmula civilizatória importada da agenda transnacional, não vale um só momento de atenção especial à luz interior que dá vida própria a uma gente. No Ceará, temos empobrecido bastante por esse equívoco. E um dos exemplos mais claros dessa dicotomia é a decadência do futebol de salão, o esporte que verdadeiramente nos tornou referência internacional.
As conquistas cearenses no universo do futebol de salão parecem incontáveis na nossa lembrança orgulhosa de tantos títulos e emoções. Com atletas genuinamente cearenses, fomos campeões brasileiros, sul americanos e mundiais, por diversão, arte e estilo desportivo. Há pouco mais de dez anos, tínhamos quatro entre os cinco titulares da seleção brasileira. Impossível não levar em conta tamanho potencial. Mas foi o que fizemos e hoje nossos clubes limitam-se ao perfil da média nacional. Os atletas, não, continuam sendo destaque fora daqui. Somente no campeonato gaúcho existem mais de dez cearenses disputando as finais, sem contar com os destaques que continuamos exportando para os times de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Vez por outra, costumo me pegar pensando sobre as razões que geraram esse fenômeno de inegável importância para a cultura cearense e, simultaneamente, quais os motivos da nossa indiferença ao seu valor de sociabilidade e reforço de auto-estima. Corro o risco dos erros e acertos da interpretação intuitiva, mas acho melhor do que o silêncio da racionalidade conservadora do refinamento acadêmico. Um emaranhado de abstrações e fatos concretos projeta em mim reflexões de caráter social, econômico, climático, étnico e político, sugeridas em um universo de significações aparentemente distantes mas que, estranhamente, aceleram as batidas do meu coração.
Por ser um Estado de poucas chuvas, nunca tivemos problemas com os altos investimentos necessários para a construção de quadras cobertas. A periferia de Fortaleza e todos os municípios do Ceará estão cheios desses retângulos de cimento com 36 por 24 metros e duas pequenas traves de madeira, cano de ferro ou PVC. As praças, as mais modestas escolas e os bairros mais distantes possuem espontaneamente suas quadras abertas para o exercício do futsal. Em relação a outras regiões, essa multiplicidade é um fator diferencial para a formação de craques. Ainda pelo olhar do custo estrutural para a prática do futebol, fica claro que, para nós, manter um campo gramado de 120 por 90 metros é quase um insulto aos que querem a água para beber e para a fruticultura irrigada. Já em outros estados, água não é problema e, não sei se bem por isso, mas eles são melhores do que nós no futebol de campo.
É curioso observar o Castelão, sua imponência de concreto armado e sua classificação de terceiro maior estádio de futebol do Brasil, enquanto nossos clubes profissionais não passam de arremedo periférico das competições nacionais. Paralelamente, o ginásio Paulo Sarasate, palco principal do futsal, sempre teve dificuldades para manutenção. Tem uma coisa errada na capacidade dos poderes públicos de interpretar nossos sentimentos e necessidades. Com a onda neoliberal que varre os valores simbólicos da sociedade, em nome da abertura unilateral do mercado, é que as essências comunitárias são definitivamente expurgadas do modelo de crescimento. Quando consegue ser muito bonzinho, o governante permite que seus asseclas publicamente fiéis, baseados no poder das leis coloniais e pós-modernas, ditem o nosso gosto e versão de destino.
O conhecimento, a compreensão e intercâmbio com outras culturas são privilégios para o entendimento do mundo e para a vida, desde que possamos influenciar nas transformações a partir das nossas crenças. Os intelectuais ancorados no poder negam a si mesmos o direito de se olhar no espelho e tendem a repetir o traço conservador que vem de fora, insistindo em nos condenar ao fracasso da imitação barata pelo complexo de inferioridade. Um cearense, cabeção, pescoço curto e estatura mediana, que faz arte e joga futebol por prazer cotidiano, em uma deferência ancestral à sua cultura nativa mesclada com o branco e outras pequenas variações raciais, não cabe na távola seletiva da arrogância metida a culta.
Os colégios que atendem ao que ainda resta da classe média pra cima possuem quadras cobertas com agradáveis pisos de madeira e, de tanto os pais dos seus alunos irem para Miami, dá a impressão de que os garotos estão ficando com a cabeça meio comprida, são mais altos e preferem esportes individuais. Vivência coletiva dá trabalho, é enfadonho e ainda divide louros. Melhor futebol de botão transfigurado em jogos eletrônicos. Essa moçada queria ser o Senna, passou a desejar ser o Guga e vai ser quem o sucesso desacompanhado projetar pela massificação da tevê. A outra face da moeda mostra os tradicionais torneios de futebol de salão, na periferia de Fortaleza e no interior do Estado, rareando e as quadras rachando ao relento.
Foram incrustadas em algumas das nossas favelas estruturas desportivas cobertas e coloridas, com salas de aula e quadras dentro, mas a garotada não pode brincar na hora que tem vontade e, em muitas delas, não pode jogar futebol de salão. Perguntei, certa vez, à diretora de um desses espaços o motivo da proibição e ela respondeu com muita propriedade técnica e nenhum senso de subjetividade humana: “É que o material do teto da quadra foi projetado para utilização em regiões de sol menos intenso do que o nosso. A fibra resseca e se eu deixar os meninos jogarem, eles vão chutar a bola com força e quebrar tudo”, disse orgulhosa da decisão, apontando para uma parte quebrada por trás da trave solitária.
Sem referências significativas à nossa importância como campeões mundiais de futsal, muitos colégios da capital realizam em períodos de férias torneios de futebol de areia, na Praia do Futuro. Ao lado do chão batido, espelhando o céu, preparado carinhosamente pelas ondas em refluxo, a meninada joga na parte fofa, como é feito em outros lugares que não desfrutam do tapete compacto de areia posto pela natureza à nossa vontade. O pior de tudo é ler nas faixas agitadas pelo vento que aquilo é um campeonato de beach soccer. Crime cultural da mesma essência também vem sendo cometido com a introdução do six soccer e sua grama sintética. Há instantes em que penso que antes da Coca-Cola mudar totalmente sua marca no mundo inteiro para Coke, nós, brasileiros, estaremos chamando futebol de soccer, como os norte-americanos chamam.
Ninguém se incomoda com isso. Depois de termos dado à Nike poder sobre a seleção brasileira até 2.006, discutir o abandono do futebol de salão cearense cheira a tema fora de cogitação. O recente título da Copa América e a jeitosa performance da nova equipe “nacional” aliviaram um pouco a frustração da Copa do Mundo, quando fomos obrigados, por submissão colonial a ceder o resultado final da partida para a França, de modo que a taça da maior competição de massa do planeta findasse o século nas mãos de um país europeu. A realidade do futebol profissional brasileiro segue o mesmo caminho da diluição do futsal cearense, inclusive com a função de produzir craques para o mercado externo. Toco nesse assunto de teimoso e porque dói ver a arte dos nossos lances convertida na maleabilidade dos bonecos suspensos nos jogos de totó. Por fora das paredes da caixa, dá para escutar o rodar das varetas entre risadas e deboches.