TOINZINHO 1921 2015 – A viagem de volta
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 164 (Editora Riso), pág. 26
Edição de novembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
As crianças começaram a chegar devagarinho para ver o meu pai morto. Ele estava sobre uma cama, em calça e camisa comuns, mas que costumava vestir quando ia para algum lugar especial. Ao lado da cabeça, um dos chapéus que também gostava de usar. Encostada na cabeceira da cama, uma das suas bengalas-cajados. No chão, a alpercata de couro com solado de pneu.
Muitas meninas e muitos meninos não estavam acreditando que ele falecera. Queriam ver de perto, conferir com os próprios olhos. Meu pai, Toinzinho, estava com 94 anos e gostava de circular pelas ruas da cidade de Independência em um tratorzinho de arado. Muitas vezes fazia isso acompanhado por um carneiro ou um bode, que levava em pé dentro da pequena carroceria acoplada ao trator.
O motivo do seu falecimento foi qualquer um que possa ser chamado de boa morte, como, no passado, era hábito se desejar a quem se amava. Deitado em uma rede na sala, final da tarde, encerrou o ciclo do viver como pessoa, no modo dos passarinhos. Era um ser da natureza. Simplesmente desligou. E as crianças puderam contemplar as expressões suaves do seu rosto na viagem de volta.
Poucos dias antes, meus irmãos e eu havíamos estado com ele e com a nossa mãe, em uma comunhão de despedida não anunciada. Momentos intensos, afetuosos, reforçados pela força dos símbolos da casa-museu e do ambiente verde e livre de caçadas caracterizadores do lugar-sistema que eles criaram para morar, na fronteira do urbano com o rural. Do alpendre da frente da casa da Fazenda Manchete, o mundo das ruas; e do alpendre de trás, o universo dos matos.
Reticentes, mas à vontade, as crianças entraram na casa onde morava o homem-trator. Tocavam em seu rosto e olhavam umas para as outras na comunicação muda de quem opera em um sentido que não o da racionalidade. Não sabiam que teriam uma surpresa depois do velório. E tiveram. Não envolvendo a imanência do tratorzinho, mas uma caminhonete da mesma cor alaranjada, na qual o meu pai há muito tempo dizia que queria ser levado para o cemitério.
Sabendo que se tratava de um carro antigo e que poderia trazer complicações de funcionamento no dia do seu enterro, ele orientou o Lisboa quanto a detalhes necessários ao contorno de eventuais problemas de enguiço. E não deu outra, pois quando fui tirá-la da garagem, o motor só pegou com injeção “eletrônica” manual. Freio não havia, embora com um pouco de acréscimo de fluido deu para estacionar.
Para deslocar o meu pai na carroceria da velha Ford 1974, como era desejo dele, seu corpo foi acomodado em uma urna mortuária, que seguiu o trajeto aos cuidados diretos das netas e dos netos, todos em cima da caçamba, como ele costumava carregar borregos e cabritos. O cortejo teve a expressão calorosa dos eventos de vida comunitária.
Antes de chegar na igreja, para uma oração de adeus, a roda do lado esquerdo traseiro começou a fazer muito barulho. Dei umas dez pedaladas no freio e consegui parar. O pneu estava todo torto, quase para cair. Imediatamente muitas mãos apareceram para pegar o caixão e levá-lo em caminhada, enquanto o conserto era feito. Coisa simples, apenas parafusos frouxos.
Parte da meninada acompanhou o séquito e parte ficou acompanhando o que ia acontecer com a caminhonete. E todos nos encontramos no patamar da igreja, onde estacionei o carro para dar continuidade à jornada. Novamente o corpo do Seu Toinzinho foi posto na caçamba e as netas e os netos subiram outra vez para ir com ele até o cemitério. O sino tocou, as crianças se despediram do personagem do tratorzinho, familiares e amigos estiveram com ele ao pôr-do-sol, e me deu uma profunda alegria percebê-lo seguindo tão amavelmente presente.